Direito à Cidade e formação das favelas: Uma expressão do racismo estrutural
Direito à Cidade e formação das favelas: Uma expressão do racismo estrutural

Por Brenda Wetter Ipe da Silva, Juliana dos Santos Rosa, Rayane Karoline Chagas de Souza do Nascimento e Stéphani dos Santos

É que em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.

(JESUS, 1961, p. 17)

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca compreender como a discriminação racial impactou a formação e a manutenção das favelas. Assim, tem por objetivo geral analisar a origem histórica das favelas nos espaços urbanos brasileiros e, por objetivo específico, compreender a percepção do desenvolvimento urbanístico e a construção social periférica a partir do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e demais normativas referentes ao direito à cidade.

Para tanto, identifica os conceitos essenciais referentes ao direito à cidade e o arcabouço legal e jurídico que o sustenta. Em seguida, reconstrói a história das favelas brasileiras, observando-se, com especial atenção, a influência da abolição da escravatura nesses espaços. Por fim, analisa a realidade da população ocupante das favelas para observar o impacto do racismo sobre essas regiões.

1  DIREITO À CIDADE: CONCEITO E NORMATIVAS

O direito à cidade foi originalmente conceituado pelo filósofo marxista francês Henri Lefebvre enquanto uma plataforma política que se distanciava de um direito a ser institucionalizado no arcabouço jurídico do Estado (TRINDADE, 2012). Dessa forma, assim como referiu Carmona (2015, p. 133/134), “o direito à cidade partiu de Lefebvre, mas ganhou nova conotação com as conferências e os tratados internacionais”.

Quanto às normas internacionais, a fama mundial do conceito de direito à cidade foi firmada pela elaboração da Carta Mundial pelo Direito à Cidade, redigida em Quito (Equador), no Fórum Social das Américas, em 2004 (CARMONA, 2015). A Carta pretende estabelecer compromissos e medidas a serem assumidos pela sociedade civil, pelos governos locais e nacionais, parlamentares e organismos internacionais para que todas as pessoas vivam com dignidade nas cidades. Em seu preâmbulo, estabelece a necessidade de ser enfatizada uma nova maneira de promoção, respeito, defesa e realização dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais garantidos nos instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos. Dessa forma, o direito à cidade foi inaugurado enquanto direito humano.

O documento internacional ainda apresenta como princípio do direito à cidade a igualdade e a não discriminação, de forma a garantir que todas as pessoas habitem nas cidades sem nenhuma discriminação (CARTA, artigo 2º, item 3). Sua proteção, incluindo a racial, também é expressa no preâmbulo da Carta:

Todas as pessoas devem ter o direito a uma cidade sem discriminação de gênero, idade, raça, condições de saúde, renda, nacionalidade, etnia, condição migratória, orientação política, religiosa ou sexual, assim como preservar a memória e a identidade cultural em conformidade com os princípios e normas estabelecidos nessa carta.

Nesse sentido, o direito à cidade pode ser entendido como um dos principais objetos do direito urbanístico. Contudo, em que pese a atual Constituição Federal ter sido a primeira a demonstrar preocupação com a questão urbana, o direito à cidade não adquiriu status de direito fundamental de forma expressa, sendo considerado um direito fundamental implícito, decorrente da simbiose entre o direito ao meio ambiente, do capítulo da política urbana, o direito à gestão democrática e à moradia (GOLDENFUM, 2019).

No âmbito do ordenamento jurídico pátrio, a internalização do direito humano à cidade ocorreu de forma expressa somente a partir de legislação infraconstitucional. Através do Estatuto da Cidade, o direito à cidade deixou de ser um direito reconhecido apenas no âmbito jurídico internacional. A Lei regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais da política urbana de forma a discipliná-los como instrumentos que, de modo geral, pretendem realizar o direito à cidade (CARMONA, 2015).

Para garantir esse direito para as camadas mais vulneráveis, é necessário que o Estado adote uma política urbana pautada na defesa de interesses coletivos em detrimento dos interesses individuais. Assim, o Estatuto da Cidade previu restrições ao direito individual de propriedade para garantir a efetividade do direito à cidade para a população mais vulnerável (TRINDADE, 2012).

A partir das normativas explanadas, o direito à cidade, com fundamento nos princípios da função social da cidade e da propriedade, pode ser referido como um direito social coletivo de habitação, trabalho, lazer, mobilidade, educação, saúde, segurança e proteção com caráter positivo, que exige prestações do Estado.

Considerando ser imperiosa a ação do Estado para efetivação do direito à cidade, é possível notar, ao longo da História, que as camadas mais vulneráveis da sociedade foram impossibilitadas de usufruir da cidade de forma plena, restando reféns da falta de vantagens, serviços e oportunidades decorrentes das localidades do sistema urbano (TRINDADE, 2012).

2   A FORMAÇÃO DAS CIDADES BRASILEIRAS E A ORIGEM DAS FAVELAS

Revisitar o passado mostra-se imperioso para a análise do contexto social atual. O processo de urbanização do Brasil está intrinsecamente ligado aos ciclos econômicos do país, uma vez que a construção das cidades, inicialmente, se deu no entorno dos locais onde se concentrava a atividade, de modo a facilitar os negócios (COMPANS, 2007).

Nesse sentido, os primeiros núcleos urbanos surgiram no século XVI na zona litorânea durante o ciclo de açúcar, onde se encontravam os portos para exportação do produto. Nos séculos XVII e XVIII, houve a interiorização das ocupações territoriais, visto que se adentrou no ciclo do ouro, produto comumente encontrado nas regiões de Minas Gerais e Goiás.

Ainda nesse período histórico, as regiões interioranas foram os locais buscados por escravizados fugidos que se organizavam em comunidades de resistência – os quilombos. No entanto, a necessidade de aproximação com os movimentos abolicionistas liderados pela elite branca brasileira fez com que os quilombos se aproximassem cada vez mais dos centros urbanos (VILELA e CÂNDIDO, 2018, p. 02).

Para Fontenelle (2014, p.119),

Como peças fundamentais na rede abolicionista, os quilombos assumem uma função política importante no movimento. Mais do que abrigos, temporários ou permanentes, os quilombos marcavam uma posição política.

O ciclo industrial no século XX, por fim, impulsionou o desenvolvimento das cidades, concentrando a população principalmente nas regiões centrais do Sudeste, dando início aos centros urbanos tais como são hoje conhecidos. No entanto, a ocupação das cidades brasileiras se concentrava no simples apossamento do território, sem a existência de normas para tal ou de diretrizes para a formação dos centros urbanos.

Assim, os movimentos de resistência quilombolas, bem como a Revolução Industrial, atrelada às ideias iluministas, modificaram os parâmetros sociais e econômicos que fortaleceram uma campanha abolicionista, requerendo, no primeiro momento, o fim do tráfico negreiro atlântico e, posteriormente, o fim da escravidão. No Brasil, a abolição da escravatura ocasionou uma brusca transformação na ocupação das cidades, uma vez que não houve movimento do Estado para a criação de políticas de inserção dos ex-escravizados no mercado de trabalho ou alocação em moradias.

Diante desse cenário, as regiões de morros e suas encostas passaram a ser ocupadas pelos novos libertos e por imigrantes pobres despejados dos cortiços, ante sua incapacidade econômica de se estabelecer nas edificações dos centros já formadas. Cumpre ressaltar que tais regiões foram, anteriormente, apossadas por camadas mais favorecidas da sociedade em busca de refúgio contra as doenças epidêmicas dos centros.

Nesse contexto foram construídos os primeiros casebres no Morro da Favela - atualmente conhecido como Morro da Providência - responsável pela origem do termo popularmente adotado para se referir às comunidades estabelecidas nessas regiões, que seriam cada vez mais marginalizadas e apartadas de políticas públicas.

A proliferação e o desenvolvimento das favelas foram objeto de tentativas de remoção pelo Poder Público sob a justificativa de que eram obstáculos ao desenvolvimento da cidade, sobretudo no início dos anos 1960. No entanto, vislumbrou-se vantagem para a indústria, comércio e serviços do entorno na mão de obra barata oriunda das favelas.

Ademais, ante o desinteresse do Estado em custear a construção de moradias populares para realocar os residentes do local, tais espaços restaram aceitos como elementos permanentes da cidade, sendo consagrado nas legislações urbanísticas pós-Constituição Federal de 1988 o direito à moradia e o princípio da não remoção.

3 A FAVELA COMO FORMA DE DISCRIMINAÇÃO

Não obstante o reconhecimento do direito à ocupação das favelas, a interferência do Estado nelas se mostra, desde o início, pouco efetiva para melhorar as condições socioeconômicas dos moradores. As intervenções feitas, em verdade, tendem a se limitar a um controle social do território em nome da segurança pública, além de o espaço ser publicamente marginalizado e divulgado como reduto do tráfico de drogas.

Para além do questionamento da origem majoritariamente negra das favelas, há que se discutir o motivo pelo qual esse grupo racial (composto por pessoas pretas e pardas[1]) segue sendo a maioria nas regiões. Segundo o Ipea (2011), 66,2% das casas em favelas são ocupadas por pessoas negras, sendo 39,4% chefiadas por homens negros e 26,8% chefiadas por mulheres negras, o que reforça a conservação da maior vulnerabilidade social vivida por esse grupo.

Ainda conforme pesquisa do IBGE (2019, p. 05),

Em 2018, verificou-se maior proporção da população preta ou parda residindo em domicílios sem coleta de lixo (12,5%, contra 6,0% da população branca), sem abastecimento de água por rede geral (17,9%, contra 11,5% da população branca), e sem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial (42,8%, contra 26,5% da população branca), implicando condição de vulnerabilidade e maior exposição a vetores de doenças.

A postura do Estado para com esses espaços remete à própria origem do desenvolvimento das favelas: o desamparo dos ex-escravizados recém-libertos e demais grupos socialmente vulneráveis. Não há, por parte dos entes responsáveis pela produção de normas urbanas, interesse no (re)conhecimento do modo de vida específico da favela, como suas soluções de arquitetura e engenharia e as necessidades de seus moradores para a garantia do sucesso de possíveis intervenções (ZENKER, 2008).

Cumpre ressaltar que o Estado, ao não alcançar a população das favelas, majoritariamente negra, está praticando discriminação indireta em face desse grupo, a qual consiste em ações ou omissões que conferem desproporcional desvantagem a determinados grupos em relação a outros que recebem desproporcional vantagem, ainda que não haja a intenção discriminatória pelo indivíduo ou instituição (MOREIRA, 2019).

Para Almeida (2019, p. 34):

O racismo – que se materializa como discriminação racial – é definido por seu caráter sistêmico. Não se trata, portanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo de um conjunto de atos, mas de um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas.

Assim, as favelas permanecem sendo vistas como territórios marginalizados, onde notadamente impera a falta de assistência adequada a saúde, infraestrutura, saneamento e demais serviços públicos, componentes inerentes ao conceito abarcado pelo direito à cidade e à moradia, e que têm sido relegados, majoritariamente, à população negra que, conforme já exposto, é a maior ocupante desses espaços.

CONCLUSÃO

O presente artigo buscou compreender como a discriminação racial impactou a formação e a manutenção das favelas. O relato de Carolina Maria de Jesus ilustra, em grande parte, o exposto neste trabalho:

As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo (JESUS, 1961, p. 33).

A persistência do abandono dos grupos marginalizados, precipuamente ocupante de favelas e demais áreas à margem dos centros urbanos, ressalta o quanto o direito à cidade e à igualdade material não foi concretizado pelo Estado brasileiro. A convergência de discriminações (raça, classe e gênero) importa na manutenção intergeracional de uma situação socioeconômica precária.

Inexistentes e insuficientes, as políticas públicas, dentre elas a urbana, mantêm o status quo de grande parte da população negra, mostrando que a omissão estatal é um dos mais fortes motores do racismo estrutural vigente. Na  linha de Carolina Maria de Jesus, a favela é, ainda, o quarto de despejo das cidades.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: set. 2021.

BRASIL. Estatuto da Cidade, Lei Federal nº10. 257, de 10 de julho de 2001. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: set. 2021

Carta mundial pelo direito à cidade. Disponível em: https://www.suelourbano.org/wp-content/uploads/2017/08/Carta-Mundial-pelo- Direito-%C3%A0-Cidade.pdf. Acesso em: set. de 2021.

CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. Curso de Direito Urbanístico. Editora Juspodivm, 2015.

COMPANS, Rose. A cidade contra a favela – a nova ameaça ambiental. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 9, n. 1, maio, 2007, p. 83-99. Associação Brasileira de Pós Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional: Recife, Brasil.

CUNHA, Neiva Vieira; MARCO, Antonio da Silva Mello. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. v. 4. n. 3. jul/ago/set 2011. p. 371-401

FONTENELLE, Deborah da Costa. Quilombos, Abolicionismo e a cidade: Política e simbolismo na inserção do quilombo do Leblon na dinâmica urbana do Rio de Janeiro do final do século XIX. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2014.

GOLDENFUM, Fernanda Peixoto. Cidade acessível e inclusiva a pessoas com deficiência: um estudo da efetividade do Projeto Rota Acessível da Lei do Plano Diretor de Acessibilidade de Porto Alegre. Porto Alegre: 2019.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4 ed. Brasília: Ipea, 2011.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1961.

MAGALHÃES, João Carlos Ramos. Histórico das favelas na cidade do Rio de Janeiro. Revista Desafios do Desenvolvimento. Brasília, ano 7, 63 ed. 2010.

MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019.

TRINDADE, Thiago Aparecido. Direitos e cidadania: reflexões sobre o direito à cidade. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 87, 2012, p. 139-140.

VILELA, Maria Eduarda Costa; CÂNDIDO, Marcos Roberto. A luta pela liberdade: a construção dos quilombos abolicionistas no Brasil e em Muzambinho no século XIX. Anais da Jornada Científica e Tecnológica e Simpósio de Pós-graduação do IFSULDEMINAS. ISSN: 2319-0124. 2, vol. 10, 2018.

ZENKER, Ana Luiza. Negros são maioria nas favelas, segundo estudo do Ipea. Memória EBC, 2008.

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[1] Nos termos do art. 1º, parágrafo único, IV do Estatuto da Igualdade Racial, população negra é “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga”.

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