Por Maria Luiza de Barros Rodrigues
Ao falar dos processos de constituição das cidades na diáspora africana, é inevitável não falar da relação entre cidade e escravidão, racismo, segregação, higienismo, mas, do mesmo modo, do que insurge durante o tempo-espaço colonial duradouro, como quilombos, favelas, terreiros e templos religiosos afro-brasileiros, blocos afros, escolas de samba, bailes funk, entre tantos outros. Pessoas africanas e seus descendentes foram fundamentais para a formação sociocultural no Brasil, inventaram territórios e formas de refazer a cidade na diáspora, conformando identidades plurais. Talvez isso não seja novidade, pelo menos não deveria em pleno século XXI. De acordo com o historiador Flávio Gomes, analisar o contexto urbano do Brasil é uma boa maneira de compreender a dimensão dessa contribuição da escravidão e do pós-emancipação. Para Gomes (2019), as grandes cidades foram repensadas e fundamentalmente “organizadas” por escravizados e libertos enquanto espaços e territórios africanizados, crioulizados e, também, pelas formas de pensamento baseadas na coerção de senhores, poder público, políticas higienistas e arquitetos.
Há, junto a isso, portanto, dimensões visíveis, invisíveis, audíveis, humanas e não humanas de ocupação, edificações, coletividades que fogem da racionalidade branca e eurocêntrica. Entretanto, ainda não são consideradas como parte das políticas e elaborações urbanas, uma vez que a permanência das estruturas[1] como algo que foi montado no passado, o racismo atravessa séculos, se remonta de maneiras mais enviesadas possíveis até os dias atuais na sociedade brasileira, impedindo a compreensão das camadas dessas existências na dimensão espacial. Então, afinal, o que contém na amplidão das cidades negras? Como considerar as diversas formas de vida que ocupam e agem nos territórios? O que a imaginação negra pode informar sobre técnicas e saberes?
A fim de desfazer essa textura colonial, é importante promover e ampliar a construção de um campo de debate na esfera dos estudos urbanos que não esteja dissociado das questões étnico-raciais e das suas relações com a Arquitetura, Urbanismo, Geografia, História, Direito, Artes, entre outras disciplinas. Para isso, podemos considerar as inúmeras formas afrodiaspóricas de ser e fazer a cidade, que servem como fios que contêm registros projetados ao longo do tempo e que através dos quais podemos costurar, de maneira breve neste ensaio, a ampliação do entendimento, das leituras e aplicações sobre as cidades brasileiras. Esses caminhos expressam aspectos transatlânticos e territoriais, que trans-bordam/transbordam com toda sua herança ancestral e sinalizam maneiras como a imaginação, os deslocamentos, o corpo, a memória negra se articulam face a processos urbanos hegemônicos e limitados.
Transbordar também diz respeito ao esforço metodológico para compreender tudo o que esse conjunto de coisas negras informam, estabelecendo, portanto, a necessidade de articulação entre os variados campos do saber, como uma via potente para produzir conhecimentos que acrescentem aos já assentados e, assim, superar algumas estruturas já falidas acerca das complexidades e contradições presentes no contexto urbano brasileiro. Nesse sentido, ao aliar a perspectiva interdisciplinar dos estudos sobre as cidades à compreensão dos novos processos vigentes, inicia-se uma costura possível pela imaginação entre as brechas da segregação, apagamento e morte para que possamos vislumbrar futuros maiores para além desses impostos.
Esse entendimento, que parte de uma vivência interseccional e indisciplinada pelos territórios, expõe vários convites epistêmicos a desaprender institucionalizações e fôrmas que muitas das vezes não cabem na realidade cultural, social e econômica das cidades brasileiras. E, como propõe a coletiva de mulheres negras Terra Preta Cidade, é fundamental desembranquecer as perspectivas, as práticas e as narrativas sobre a cidade a fim de repovoá-la com o tanto de coisa que foi sequestrada dela, como se não fosse digno, relevante, próprio ou real (Coletiva Terra Preta Cidade, 2019). Trata-se, então, de uma disputa política, geográfica, territorial que não deixa de ser estética, criativa e metodológica.
Eis, então, que o contexto atual nos desafia a um reposicionamento diante das insurgências que a população negra, tal como coletivos culturais e religiosos afro-brasileiros, enfrentam cotidianamente. Para isso, o que se coloca como base para o estudo é o território como categoria abundante, amplo, singular, e não como uniforme e estável. Assim, é igualmente reconhecer que se trata de dinâmicas combinadas entre múltiplos territórios pluriversais, que firmam, formam e reelaboram este chão em busca de liberdade.
A terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou. (ÔRÍ, 1989)
Com esses convites para seguir em busca das maneiras que contemplem a amplidão contida nos territórios e seus desdobramentos aliados à perspectiva racial, é importante entender as outras cosmologias e poéticas melanizadas que se encontram, se confluem e tecem saberes. Por cosmos, aqui, entendemos a ação e associação de recortes de mundo que não só o humano — deuses, espíritos, símbolos, seres inanimados, ações da natureza, etc, tudo isso se dá no e para o território, o que propulsiona a importância de considerar as experiências que pulsam da fluência dos sentidos e ampliar as ferramentas de atuação para essas áreas do conhecimento. E em acordância com Nego Bispo (2018), é por isso que, mesmo tentando tirar nossa língua, nossos modos, não tiraram a nossa relação com o cosmo, não tiraram a nossa sabedoria.
Dar espaço ao que passa da borda. Dar importância a outros sentidos e percepções corpóreas para com a terra. Não à toa que o corpo para a cidade negra é também referência, fonte inesgotável de acúmulos e ressonâncias ancestrais, que pode revelar o desejo de construção de novos arquivos, novas formas de reconhecimento de pessoas negras em numerosas espacialidades.
Produzir cidade vem das brechas, das ruas, da oralidade e do modo de se relacionar com indivíduos, terra e propriedade (SILVA, 2019). É preciso bordar do avesso nossas cidades que são repletas de suturas violentas e secularmente mal resolvidas, rasgar os estereótipos que constituem os territórios negros, esburrar a imaginação do que compõe os corpos e almas, para percebê-la em toda sua plenitude de existências. Deslocar essa disputa
(...) nos faz pensar não apenas nos corpos pretos ausentes — mas nas ressonâncias de suas presenças no que materialmente ainda permanece: a mata, as pedras, a terra, a topografia do local. Se muito se fala da repressão e da derrota, nos interessa perceber e sentir também o desejo de liberdade e de utopia dos homens, mulheres e crianças insurgentes. (FREITAS, Kênia, 2021)
Em oposição ao apagamento das existências, resistências, referências e territórios do povo negro, entre rasgos e suturas, trans/bordamos a cidade no registro e uso das suas geografias alargadas e profundas, reivindicando a ancestralidade e a atualidade das funções da terra e território.
REFERÊNCIAS
Freitas, Kênia. “PretEspaço: descorporificação e desaparição no cinema negro”. Página de blog Coletiva Terra Preta Cidade, outubro de 2021. https://terrapretacidade.medium.com/pretespa%C3%A7o-descorporifica%C3% A7%C3%A3o-e-desapari%C3%A7%C3%A3o-no-cinema-negro-3b8b87df73bf.
Coletiva Terra Preta Cidade. “Des-embranquecendo a cidade”, 2019. https://open.spotify.com/episode/2URAPncLEn604IqYzDTHVC?si=0b74a6b3bd 2d470b.
Flávio Gomes e Lilia Schwarcz. Considerações sobre a escravidão: Lilia Schwarcz e Flávio Gomes. Mediação: Nilma Teixeira Accioli e Raffaella Fernandez, 2019.
http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/consideracoes-sobre-a-escravidao-lilia-schwar cz-e-flavio-gomes/.
ÔRÍ. Direção de Raquel Gerber. Brasil: Estelar Produções Cinematográficas e Culturais Ltda, 1989, vídeo (131 min), colorido, formato digital.
Santos, Antonio Bispo. Somos da terra. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 12, 2018.
Silva, Renata Segatto Barboza da. “Corpo-cruzado: proposição narrativa no entrecruzamento de corpo, saberes e cidades”. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), 2019
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Maria Luiza de Barros Rodrigues é arquiteta urbanista, pesquisadora cultural e curadora independente. Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo (PPGG-UFES) e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (FAU USP). Idealizadora e curadora da plataforma Vi.bra.tion. Cofundadora e integrante da coletiva Terra Preta Cidade. Cofundadora da Cidade Quintal.
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