Brasília-encruzilhada: Utopia moderna, tombamento e os desafios da gestão democrática no território
Brasília-encruzilhada: Utopia moderna, tombamento e os desafios da gestão democrática no território

Por Ilka Teodoro

A construção de Brasília propunha a concretização de uma utopia urbana. A capital moderna para acolher a representação política do Brasil traduzia um projeto de sociedade condizente com o desenvolvimento econômico do país à época. Projetada como uma cidade-parque funcional e setorizada, Brasília nasceu como a “cidade do futuro” – a capital da esperança, cantada em verso e prosa -, associada ao projeto de mudança política, administrativa e espacial da capital brasileira para o interior do Brasil. 

O Plano Piloto, que hoje nomina a primeira região administrativa do DF (RA PP), era originalmente a parte planejada, o projeto urbanístico da cidade. Foi escolhido através de um concurso nacional realizado em 1957, vencido pelo urbanista Lúcio Costa, e teve sua forma inspirada pelo sinal da cruz, com um dos eixos arqueados para melhor se adaptar à topografia. “Nasceu de um gesto primário de quem assinala um lugar, ou dele toma posse” (IPHAN, 2018). O Plano Piloto foi dividido em quatro escalas – monumental, residencial, gregária e bucólica -, cortado por dois eixos que se cruzam exatamente onde se localiza a rodoviária.

Figuras 1 e 2 do Relatório do Plano Piloto de Brasília

Visando manter a coesão urbanística de sua concepção, foi estabelecida uma legislação específica para preservar o conjunto urbano decorrente do Plano Piloto de Brasília, um instrumento jurídico-administrativo de proteção. A lei de organização administrativa do Distrito Federal definiu em seu art. 38 que “qualquer modificação no plano-piloto, a que obedece a urbanização de Brasília, depende de autorização de lei federal”(3). Em 1987, quando houve a inscrição do Plano Piloto de Brasília na lista do Patrimônio Mundial, foi editada a primeira normativa específica de preservação de seu projeto urbanístico como garantia jurídica para atender à exigência da Unesco. O tombamento do conjunto urbanístico de Brasília não se caracteriza como tombamento arquitetônico, mas visa preservar as características do plano piloto e a articulação das quatro escalas presentes no projeto. 

A legislação de proteção do conjunto urbanístico de Brasília, em conformidade com a Constituição Federal e o Estatuto das Cidades, demandou a criação de um Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB), equivalente ao plano diretor, à lei de uso e ocupação de solo e ao plano de desenvolvimento local aplicados às áreas integrantes do Conjunto Urbanístico de Brasília (CUB), conforme disposto na Lei Orgânica do Distrito Federal e sucessivas alterações e regulamentações.

No ano em que completa 62 anos, a capital do país debate a minuta da proposta de lei complementar para aprovação do PPCUB depois de mais de uma década de elaboração do texto-base, com o grande desafio de conformar a gestão democrática do território enquanto pressuposto do direito à cidade; o tombamento e a utopia modernista, associada a um modelo sonhado de sociedade, harmônico, perfeito e ideal. 

A discussão expõe a Brasília-Encruzilhada: cidade construída a partir de uma lógica de segregação, síntese do Brasil pós-abolição (PINTO, 2020). 

A capital se consolidou como referência arquitetônica e cultural. No entanto, a maior área urbana tombada do mundo, patrimônio da humanidade, também reproduz a estrutura do país, sedimentada na colonialidade e na escravidão.

“O fato de o desenho não ter superado as contradições evidencia o caráter utópico do projeto – a aspiração de um viver mais humano permanece ainda como promessa.” (Ferreira & Gorovitz, 2020).

A construção da cidade estimulou um fluxo migratório e mobilizou famílias (em sua maioria do norte e nordeste, formadas por pretos e pardos) em torno do trabalho na construção civil sem que houvesse um planejamento para fixação dessas pessoas na nova capital, acarretando realocação das famílias que se assentavam nos acampamentos das construtoras (vilas) em outras regiões ou a remoção forçada.

Brasília já nasceu com um déficit habitacional. Apesar de sua construção ter se pautado pela interiorização do país e povoamento do sertão “vazio”, o conjunto urbanístico é recheado de espaços ociosos em contraste com o adensamento verificado nas áreas periféricas. 

O Plano Piloto foi planejado para ter 500 mil habitantes, mas sua população atual é de pouco mais de 200 mil(5). A baixa densidade populacional contrasta com a população flutuante de quase 700 mil pessoas que acessam o centro todos os dias, após longos percursos, para fazer a economia local funcionar. O território-ilha, protegido pelo lago que funciona como uma “faixa de segurança sanitária”, higienista, onde os corpos periféricos acessam para o serviço mas não para o usufruto da cidade-parque de arquitetura monumental.

A cidade modernista repetiu e reforçou o binômio centro-periferia através do deslocamento “Plano Piloto-Satélite”, uma nova roupagem para a estrutura colonial. O ordenamento territorial exclui e marginaliza a população negra que, apesar de majoritária, não ocupa o território proporcionalmente.

Apesar de receber diariamente um terço da população do DF, não possui serviço público de restaurante comunitário, unidades de pronto atendimento (somente a emergência de três hospitais de referência), casas abrigo, casas de parto, equipes de saúde da família compatível com a população flutuante, creches públicas, escolas públicas em período integral, sistema de mobilidade ativa, acessibilidade leste-oeste,  habitação de interesse social, estratégias de redução do deslocamento casa-trabalho, rede de atendimento psicossocial completa, gestão de resíduo compatível com a política nacional e local.

Nos finais de semana, a lógica se inverte com opções de cultura, esporte e lazer concentradas no centro, mas com o transporte público reduzido dificultando o acesso da população periférica. Centralização do lazer, da cultura, dos postos de trabalho, da renda e do poder. Descentralização da habitação precária, da pobreza e outras vulnerabilidades.

A rodoviária do Plano Piloto é a síntese da encruzilhada. Não existem estudos recentes que forneçam dados precisos sobre os usuários do local. A ausência de estatística revela o que se pretende ocultar: a existência de padrão de gênero, raça e classe na configuração da cidade a partir do sujeito “universal” pelo e para o qual ela foi desenhada(6).

Não há neutralidade a partir desse paradigma. A cidade de concreto foi moldada para não permitir que corpos desviantes e divergentes circulem do mesmo modo. “É, ao mesmo tempo, organizador de qual cidade é acessível e planejada a partir dos corpos que podem acessá-la” (Liz, et al., 2021). 

Na encruzilhada, as quatro escalas presentes no projeto - monumental, residencial, gregária e bucólica – interseccionam a escala humana, expondo as entranhas de um Brasil que projetou na capital seus sonhos, mas também as mazelas de sua história.

A organização socioespacial segregada impacta de forma muito prejudicial a mobilidade (Fonseca, 2018). Reforça o movimento pendular e agrava a desigualdade social. Dados do IBGE de 2020, utilizando o índice Gini, apontam que o DF tem a maior desigualdade do país em relação ao rendimento domiciliar por indivíduo(7).

Desigualdade que tem cor e gênero. A cidade que se substantiva no feminino, tanto pelo próprio nome da capital, quanto pela maioria de mulheres circulando nos espaços públicos, enfrenta os desafios da aridez do espaço urbano.

A cidade que foi planejada por homens é atravessada por mulheres. Elas representam 52,49% da população do Distrito Federal. Segundo dados apresentados pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (CODEPLAN/DF), são as que mais se deslocam a pé ou de ônibus(8), sendo maioria em circulação nos espaços e equipamentos públicos. Num cruzamento com os dados de raça/cor, a população negra do Distrito Federal ultrapassa 56% do total de moradores, sendo possível afirmar que mulheres negras constituem o maior grupo populacional do Distrito Federal. 

Em 2018, tive a oportunidade de disputar as eleições concorrendo ao cargo de deputada distrital. Uma construção coletiva após um longo debate com mulheres diversas que vivem e experimentam a cidade em múltiplas formas. Utilizamos a frase “A cidade é das mulheres” como lema da campanha. Era simultaneamente uma afirmação, um questionamento e um projeto. Hoje, na condição de gestora pública, a primeira mulher negra à frente da Administração Regional do Plano Piloto pelo quarto ano consecutivo, participo das discussões do PPCUB com todos os atravessamentos que me constituem.

A partir da constatação de que mulheres negras são o grupo populacional majoritário, nos perguntamos: a cidade é mesmo das mulheres? O centro é local da expropriação do corpo e não da fruição. Tanto os espaços públicos, que deveriam ser pensados e gestados para garantir segurança e livre circulação de pessoas, como as ruas que funcionam como as entrelinhas das cidades e o ponto de conexão entre o público e o privado, constituem um espaço hostil para mulheres, principalmente as mulheres negras e periféricas.

Elas não andam na rua em segurança e nem circulam confortavelmente. Responsáveis pela maioria dos domicílios de baixa renda no DF e pelo cuidado de crianças, idosos e pessoas com deficiência, encontram uma estrutura inadequada do ponto de vista da habitação, mobilidade, acessibilidade, segurança e acolhimento.

O planejamento urbano de Brasília não se concretizou no feminino.

O desenho do espaço urbano impacta diretamente na vulnerabilização das mulheres, particularmente as mulheres negras. As longas distâncias do percurso casa-trabalho, por exemplo, transformam o tempo e as condições de deslocamento em um fator de adoecimento. O acesso precário ou inexistente às políticas de saneamento, coleta e tratamento de lixo, emprego, moradia, educação, segurança alimentar e saúde (racismo ambiental) fazem do espaço urbano o espaço da disputa pela sobrevivência na informalidade e na insegurança. A cidadania é geografizada (SANTOS, 2012), de forma que o acesso aos direitos fundamentais é diretamente proporcional à localização geográfica dos cidadãos no território, impactando na qualidade de vida e da democracia, ainda racializada. Cor e gênero estão diretamente relacionados às questões de renda e acesso à cidade no DF.

Debater diretrizes, volumetria, parâmetros construtivos, gabaritos e uso de solo sem superar o equívoco fundante da cidade é prenúncio de caos urbano. 

Sendo o direito à cidade reconhecido pelo Estatuto das Cidades a partir da política urbana prevista na Constituição Federal, tecer democracia e território em Brasília pressupõe reivindicar a história e as existências não contempladas na utopia moderna da construção da capital e promover a reintegração de posse desse espaço ainda pouco adensado, com foco no atendimento de necessidade específicas dos grupos minorizados, especialmente mulheres negras com demandas por moradia, segurança alimentar, creches e escolas em tempo integral, saúde coletiva, mobilidade e espaços comunitários de cultura e lazer e proteção do Estado contra toda forma de violência. Uma cidade ideal para as mulheres é uma cidade ideal para toda a população. 

O PPCUB não pode ser um plano de preservação de um projeto de segregação. É um desafio pensar estratégias para redução dessas distâncias e desigualdades observando as diferenças. A adoção de uma perspectiva interseccional é fundamental no processo de construção desse marco, assim como garantir a efetiva e ampla participação social na elaboração da política pública e do marco legal.

Abertura da Exposição Reintegração de Posse: Narrativas da Presença Negra na História do Distrito Federal
Paradas de ônibus do Setor Comercial Sul e Setor Bancário Sul
Brasília-DF(9)

(1) https://www.planopiloto.df.gov.br/

(2) https://pt.wikipedia.org/wiki/Concurso_para_o_Plano_Piloto_de_Bras%C3%ADlia

(3) https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-3751-13-abril-1960-354316-publicacaooriginal-1-pl.html

(4) http://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/15139/Decreto_10829_14_10_1987.html

(5)  Dados PDAD 2021

(6) Lucio Costa em 1987: “Eu caí em cheio na realidade, e uma das realidades que me surpreenderam foi a rodoviária, à noitinha. Eu sempre repeti que essa plataforma rodoviária era o traço de união da metrópole, da capital, com as cidades-satélites improvisadas da periferia. É um ponto forçado, em que toda essa população que mora fora entra em contacto com a cidade. Então eu senti esse movimento, essa vida intensa dos verdadeiros brasilienses, essa massa que vive fora e converge para a rodoviária. Ali é a casa deles, é o lugar onde eles se sentem à vontade. Eles protelam até a volta para a cidade-satélite e ficam ali, bebericando. Eu fiquei surpreendido com a boa disposição daquelas caras saudáveis. E o ’centro de compras’, então, fica funcionando até meia noite. Isto tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. Só o Brasil. E eu fiquei orgulhoso disso, fiquei satisfeito. É isto. Eles estão com a razão, eu é que estava errado. Eles tomaram conta daquilo que não foi concebido para eles. Foi uma bastilha. Então eu vi que Brasília tem raízes brasileiras, reais, não é uma flor de estufa como poderia ser. Brasília está funcionando e vai funcionar cada vez mais. Na verdade, o sonho foi menor do que a realidade. A realidade foi maior, mais bela. Eu fiquei satisfeito, me senti orgulhoso de ter contribuído.”

(7) Mede a concentração de renda apontando a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e os dos mais ricos, o que resulta em uma taxa que varia de zero (perfeita igualdade) até um (desigualdade máxima). Enquanto a média nacional é de 0,524, o índice do DF chegou a 0,548 em 2020. Fonte:  https://sidra.ibge.gov.br/tabela/7435#resultado

(8) Pesquisa andar a pe

(9) https://www.flickr.com/photos/162249675@N08/albums/72157716954434001

REFERÊNCIAS

Coelho, C. M. (jan./jun de 2008). Utopias urbanas: o caso de Brasília e Vila Planalto. Cronos, v. 9 (n. 1), pp. p. 65-75.

Fonseca, M. F. (maio/ago de 2018). Vetores em contradição: planejamento da mobilidade urbana, uso do solo e dinâmicas do capitalismo contemporâneo. Cad. Metrop., v. 20(n. 42), pp. pp. 553-576.

IPHAN. (2018). Relatório do Plano Piloto de Brasília. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Superintendência do Iphan no Distrito Federal e Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal. Brasília: Carlos Madson Reis, Claudia Marina Vasques e Sandra Bernardes Ribeiro.

Liz, A. M., Silva, A. L., Teodoro, I., Teixeira, L. M., Batista, N. S., Marques, S. D., & Assumpção, V. d. (2021). MULHERES NEGRAS NAS ENTRELINHAS DO DISTRITO FEDERAL: RAÇA, GÊNERO E CLASSE

NO DIREITO À CIDADE ACHADO NA RUA. Em A. C. José Geraldo De Sousa Junior, O Direito Achado Na Rua (Vol. 5). Brasília: Lumen Juris.

PINTO, A. F. (24 de DEZEMBRO de 2020). Distrito Federal, encruzilhada e síntese do pós-abolição. Acesso em ABRIL de 2022, disponível em FOLHA DE SAO PAULO: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/12/distrito-federal-encruzilhada-e-sintese-do-pos-abolicao.shtml#:~:text=Esp%C3%A9cie%20de%20s%C3%ADntese%20do%20p%C3%B3s,essa%20presen%C3%A7a%20chega%20a%2080%25.

SANTOS, M. (2012). O Espaço do Cidadão. São Paulo: Edusp.

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Ilka Teodoro é brasiliense, advogada licenciada, atualmente administradora do Plano Piloto e Mestranda em Direitos Humanos (UnB). Foi presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/DF, cofundadora da Associação de Advogadas pela Igualdade de Gênero, Raça e Etnia, diretora jurídica da ONG Artemis e integrante do Instituto Anis de Bioética.

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