Passei boa parte da minha infância em uma cidade conhecida como o formigueiro da América Latina, São João de Meriti, na Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro. Esse apelido surgiu por conta da densidade demográfica do município, é bem difícil estar sozinho lá, sensação comum em boa parte das cidades de regiões metropolitanas. Já a minha mãe viveu uma infância bem mais solitária de vizinhos e agitada de irmãos em outra baixada, no Quilombo de Quindiua, no Maranhão. Esses dois territórios, que tem suas boas diferenças, se encontram em similaridades que construíram o Brasil: a luta por direitos e sobrevivência a partir das lideranças sociais.
Os territórios brasileiros são organizados em sua lógica própria, construída em resposta ou defesa daquela projetada pelo Estado. Melhor dizendo, os territórios brasileiros – sejam eles originários, tradicionais ou periféricos – se constroem em defesa à violência praticada pelo Estado. Como por exemplo, a violência armada que no Rio de Janeiro, segundo o Fogo Cruzado1, já assassinou mais de 600 crianças nos últimos sete anos, enquanto são feitas campanhas pela redução da maioridade penal – é a lógica do preso ou morto.
É a mesma estrutura que condena as favelas e habitações autoconstruídas, ao mesmo tempo que promove a gentrificação e reformas higienistas nas cidades – não te querem aqui nem ali. Como também abrem nossos territórios para empreendimentos de transições energéticas, impactando a vida e terras de comunidades inteiras – no planejamento de um “futuro sustentável” não cabe a gente.
Essa política perversa de agora foi concebida pelos genes que criaram a escravidão, racismo, patriarcado e toda uma lógica de poder contrária a cultura de comunidade, estrutura que garantiu a população indígena, preta, quilombola, favelada, ribeirinha, lgbtqiapn+ – dentre outras – vivas até aqui. Por isso, precisamos cada vez mais nos atentar, estudar e fomentar ao que resiste apesar do Estado: as lideranças sociais.
Foram territórios como os quilombos que criaram as tecnologias sociais e ancestrais que mantiveram e protegiam o povo preto trazido forçadamente para o Brasil. É na sua lógica de aquilombamento que territórios periféricos favelados constroem seu movimento de bem viver, possível e disruptivo em muitas maneiras. Construir requer mãos e, neste cenário, estas mãos são de mulheres negras – lideranças sociais não por escolha, mas por necessidade. São as mãos que acolhem as vítimas do Estado, entregam cestas básicas, preparam as celebrações, têm coragem de apontar os culpados e de costurar os futuros. A elas devemos nosso passado, presente e futuro, mas quem garante o delas?
Durante a pandemia ecoamos a frase “Quem cuida de quem cuida?”, Agora, com a retomada da democracia após o governo Bolsonaro, o Brasil aprovou a Política Nacional do Cuidado2 , que não coincidentemente tem como relatora a mesma deputada federal que garantiu a formalização do trabalho das domésticas, Benedita da Silva – uma mulher preta que teve como primeiro trabalho e obrigação o cuidado com o outro.
E quando esse outro é um território?
Se em algumas realidades mulheres vivem uma tripla jornada de trabalho – com trabalho, lar e maternidade – nas favelas e periferias, nossas lideranças sociais estão na quíntupla jornada do trabalho de cuidado. Elas são mulheres, mães, donas de casa, esposas, estudantes, trabalhadoras formais e ainda lideranças territoriais. Nas enchentes salvam seus filhos, levantam os móveis, organizam as documentações da família e no dia seguinte estão lá limpando a sua casa e dos seus vizinhos. Quando ligamos a televisão também é esse o rosto que aparece cobrando melhorias, lamentando mortes, se posicionando politicamente e denunciando a polícia, apesar disso expor sua segurança frente a perversidade do nosso judiciário.
E quando esse outro é uma comunidade inteira?
O cuidado desempenhado por lideranças trans, por exemplo, não é limitado apenas a sua família, mas também a toda uma comunidade. Na cidade de Nova Iguaçu, a Iyalorixá Shirley Maria Padilha, de 48 anos, coordena a única casa de acolhimento lgbtqiapn+ da Baixada Fluminense. Em um país que há 16 anos consecutivos tem sido classificado como o que mais mata travestis e transsexuais no mundo3, manter esse espaço sem apoio do poder público e sob ameaças é trabalho e cuidado, em seu extremo.
Por trás de toda essa sobrecarga está um estado ausente no cuidado e presente na violência, sentado e ativamente passivo aos nossos direitos. Os serviços públicos que garantiriam o acesso aos direitos básicos são escassos ou inexistentes nas nossas comunidades. Frente a isso, são essas mulheres que mobilizam espaços comunitários de bem viver. Como por exemplo a Débora Silva, em Belford Roxo, que criou a organização “Sim! Sou do Meio”4. A “rua do meio”, como é popularmente conhecida a extensa Rua João Fernandes Neto, já foi considerada nas décadas de 80 e 90 uma das áreas mais perigosas da América Latina, mas hoje tem um dos projetos que atende mais famílias que a média dos Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da cidade5.
Essas lideranças assumem um papel que deveria estar sendo desempenhado pelo estado, enquanto criam maneiras de sobreviver apesar dele. Essas lideranças persistem, vivas. É impressionante, não tem como não se impressionar. Cada vez mais me interessa apenas saber como, aprender, sistematizar e buscar contribuir para a compensação desse trabalho. Não tem trabalho mais caro do que manter a vida dos nossos neste país e elas fazem isso há mais de 500 anos. Muitas vezes, sem que seja dada a dimensão do que é efetivamente construir essa possibilidade todos os dias, no chão da sua rua. Voltar à base, é olhar para elas.
Referências
ANTRA – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Dossiê ANTRA 2025. [S.l.], 2025. Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2025/01/dossie-antra-2025.pdf. Acesso em: 3 fev. 2025.
BRASIL. Projeto de Lei nº 2.762, de 2024. Institui a Política Nacional de Cuidados. Brasília, 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Projetos/Ato_2023_2026/2024/PL/pl-2762.htm. Acesso em: 3 fev. 2025.
CASA FLUMINENSE. Mapa da Desigualdade 2023. [S.l.], 2023. Disponível em: https://casafluminense.org.br/wp-content/uploads/2023/09/MapaDaDesigualdade2023-3.pdf. Acesso em: 3 fev. 2025.
FUTURO EXTERMINADO. Disponível em: https://futuroexterminado.com.br/. Acesso em: 3 fev. 2025.
SIM, EU SOU DO MEIO. Programa Social. Disponível em: https://simeusoudomeio.org.br/programa-social/. Acesso em: 3 fev. 2025.
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