Oficialmente, não existem bairros em São Paulo. O que chamamos de Vila São José, Jardim Brasil ou Bixiga são territórios afetivos, cujas fronteiras vão sendo modificadas por fatores como os interesses dos mercados, em especial o imobiliário, e os investimentos e desinvestimentos públicos. Mas essas porções de territórios dentro dos distritos e subprefeituras também podem ser mantidas pelas memórias de seus moradores a partir das coisas que se organizam cotidianamente nesta porção/neste chão.
E é justamente em torno do direito à memória e à permanência da população negra no bairro do Bixiga, localizado no centro de São Paulo, que o Mobiliza Saracura Vai-Vai1 tem se mantido ativo desde junho de 2022, quando moradores tomaram conhecimento do registro de um sítio arqueológico durante a obra de uma das estações de metrô, inicialmente chamada de 14 Bis, da futura Linha Laranja.
Nesse período, mais de 150 instituições, coletivos e outra centena de pessoas assinaram o manifesto da mobilização. A articulação é feita por moradores e coletividades da região, ativistas e organizações do movimento negro. Até agora, mais de 15 mil subscreveram dois abaixo-assinados que circularam e ainda circulam pelas redes sociais virtuais e aquelas bem reais, da agitada vida do bairro.
O primeiro contrato para início das obras da Linha Laranja foi assinado em 2013, com entrega prevista para 2018. A linha é uma parceria público-privada, mas diferente de outras PPPs do sistema metroviário, dessa vez também a obra, e não só a operação, será administrada por um consórcio privado. O projeto é do tipo “porteira fechada”, da construção das 15 estações aos 20 anos de operação. Em 2016, porém, a obra foi paralisada, em função do abandono do Consórcio Move, que alegou dificuldades de obter financiamento após empresas que o compunha terem sido denunciadas na Operação Lava Jato.
As disputas em torno da linha começaram antes da assinatura do consórcio. Em 2010, uma reportagem da Folha de S.Paulo2 revelou que moradores de Higienópolis, um bairro branco e rico na região central, colhiam assinaturas para impedir que uma das estações da linha ficasse no miolo do bairro. Entre os argumentos apresentados à reportagem, estava o medo da atração de “drogados, mendigos, uma gente diferenciada”. Houve protestos contra o apelo higienista, mas a reivindicação dos moradores foi ouvida e a estação, inicialmente prevista para a Rua Angélica, está sendo construída na Avenida Pacaembu.
Entretanto, os moradores do Bixiga não tiveram a mesma sorte de serem ouvidos. Desde o início, o projeto previa a remoção do Vai-Vai, escola de samba quase centenária. Protestos da comunidade e a resistência da Escola fizeram com que o governador anunciasse uma mudança no projeto para preservar a sede da agremiação. Mas em 2021, em meio a desarticulação provocada pela pandemia, a saída do Vai-Vai do local que ocupou por 50 anos foi anunciada pela própria diretoria, em uma live3.
Higienópolis é um dos primeiros loteamentos exclusivamente residenciais planejados para as elites em São Paulo, datado do final do século XIX, conforme as teorias urbanas correntes naquele momento. Seu nome remete diretamente a sua suposta higiene, graças ao afastamento das várzeas dos rios que cortam a cidade e dos negros e pobres que conviviam na região central e no entorno da Estação da Luz, o que desqualificou, por exemplo, o Campos Elíseos como bairro nobre.
Já o Bixiga, justamente graças à sua topografia acidentada, cheia de morros e grotas, banhado pelos rios Saracura e Bixiga, foi um lugar adequado para o refúgio de pessoas escravizadas revoltas e alforriadas, conforme registros que datam desde o século XVII. A várzea do Saracura é registrada como local insalubre, ocupada por negros em habitações inadequadas durante o século XIX e início do XX. O Bixiga permaneceu negro por todo o século 20, se constituindo como uma fronteira negra à expansão imobiliária de alta renda a partir da Av. Paulista.
O traçado da linha de metrô faz parte do planejamento essencial da cidade de São Paulo de modo contraditório: se por um lado viabiliza mobilidade e rápido acesso a áreas distintas da cidade, por outro estimula a produção de territórios segregados, exclusivamente brancos, onde se concentram os investimentos públicos e privados em serviços e infraestrutura. Para isso, criminalizam e inviabilizam a permanência negra, relegando locais com baixa infraestrutura e estigmatizados, como é o próprio Bixiga.
A mobilização nasce com as seguintes reivindicações básicas: a mudança de nome da futura estação para Saracura Vai-Vai; a adequada busca, pesquisa e contextualização dos achados arqueológicos na perspectiva de que aquele era um território negro; a manutenção dos achados no bairro, num espaço adequado de exposição e a permanência da população negra no território
O potencial arqueológico do sítio foi apontado por vários participantes da primeira reunião do Saracura. Para quem mora ou convive no bairro, era óbvio que debaixo da escola de samba havia muita coisa importante ligada ao dia a dia dos carnavais e aos ritos religiosos de matriz africana.
Para outros, já era óbvio o encontro de resquícios do quilombo, visto que uma das áreas mais importantes era justamente aquela, a beira do Rio Saracura, hoje soterrado sob a Avenida 9 de Julho, que ainda é um córrego vivo, não só na memória dos mais velhos e letras de samba. Ele corre em condições próximas da potabilidade, conforme teste realizado por iniciativa do Coletivo Salve Saracura (que integra o Mobiliza Saracura Vai-Vai, mas é anterior a ele), sendo utilizado como fonte para pequenos lava-jatos e outros comércios na sua bacia.
Mas nada disso vinha sendo considerado nos trabalhos arqueológicos. A sede do Vai-Vai sequer constava nos mapas usados nas buscas arqueológicas e o quilombo Saracura era tratado como inalcançável. Isso porque os arqueólogos envolvidos na pesquisa partiam da premissa de que um quilombo era um território paupérrimo “que não deixava materialidade”.
Primeiro, é preciso dizer que o movimento sempre trabalhou com uma perspectiva de quilombo ensinada por Beatriz Nascimento, como uma tecnologia social comunitária, que se atualiza no tempo. O Bixiga é um quilombo não porque serviu de refúgio para escravizados que enfrentaram o sistema, mas por permanecer negro, consciente e ativo.
Em segundo lugar, supor um quilombo apenas como local que “não deixa materialidade”, mesmo os existentes no período de pré-abolição, não tem nada de científico ou histórico. Essa é apenas a criação de uma memória útil para justificar as ações da branquitude no presente para reproduzir a desumanização e as condições de miséria para a população negra. Imaginar que uma população aquilombada não deixaria materialidade é imaginar que ela não come usando utensílios, não tem objetos para o trabalho ou não tem capacidade de criar rituais e ludicidade. São essas as categorias de objetos que os museus coloniais estão cheios: penicos, colheres e cacos de pratos.
Para se encontrar materialidade assim relacionada a comunidade negra, perdida na terra, a metros da superfície durante uma escavação arqueológica, primeiro é preciso imaginar uma pessoa negra existindo. É preciso imaginar diversos contextos de vida para ela. Em alguns deles, é preciso imaginar uma pessoa negra sentada numa mesa, comendo feliz ao lado dos filhos ou orgulhosa por alguma vitória. Ou revoltada e triste depois de alguma violência. Mas é inevitável imaginá-la como gente para estabelecer perguntas de pesquisa que guiem a busca.
Ao longo desse processo ficou evidente que, nem nas melhores universidades do país, responsáveis pela formação dos profissionais que ganharão as melhores licitações públicas, não se pressupõe que pessoas negras sejam pessoas, muito menos que sejam capazes de criar racionalmente qualquer coisa. A isso, Sueli Carneiro4 chama de epistemicídio. Esse pensamento tem sido útil a empresas interessadas apenas em obter lucro, assim como a governantes interessados na manutenção do pacto com a branquitude5.
Até o momento, cerca de 40 mil peças já foram localizadas pelas equipes de pesquisa arqueológica, entre fragmentos e peças inteiras. Há também estruturas de alvenaria que parecem estar ligadas à canalização do rio, drenagem de águas pluviais e de edificações de casas, que parecem ter sido desocupadas violentamente. Parte considerável dos achados arqueológicos remetem a espaços religiosos de matriz africana, podendo ter sido ali um dos primeiros terreiros de São Paulo.
Essa hipótese tem sido corroborada por lideranças religiosas de várias matrizes, que visitaram o sítio a convite da mobilização, mediante autorização da concessionária, do Governo do Estado e do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e reforçam a necessidade de pesquisas aprofundadas e preservação, pois podem abrir portas a novos conhecimentos sobre as práticas religiosas negras no Brasil.
A quantidade e algumas características desses achados remetidos a práticas religiosas sugerem um local importante, removido propositadamente e com violência, o que teria impedido as transferências de artefatos sagrados para locais adequados. Podemos imaginar, a partir dos itens (que ainda precisam ser mais profundamente estudados), que houve algum tipo de remoção forçada da população que vivia naquele lugar, talvez, com a falsa justificativa de canalização do rio. Com isso, a luta por permanência ganha reforços.
Cerca de 100 anos após objetos de grande importância terem sido deixados para trás, novamente um suposto desenvolvimento, agora camuflado como obra de metrô, tem sido usado para justificar como maus necessários a remoção do Vai-Vai, um canteiro de obras que inviabiliza pequenos negócios, o aumento de aluguéis e do custo de vida no bairro, o que paulatinamente, provoca novos deslocamentos de população negra.
Há uma inegável ligação entre essa redução da população negra, a valorização imobiliária e a diminuição das possibilidades de geração de renda dos que permanecem. Mas, assim como sugerem os achados até agora e diversos outros casos pela cidade, essa operação de desenvolvimento é, antes de tudo, uma operação de banimento racial, de especulação com os corpos negros, cuja presença estigmatizada garante a estabilidade dos preços em baixa, a expulsão, a valorização da terra e ganhos monumentais aos proprietários.
Ciente disso, em 2023, o Mobiliza Saracura Vai-Vai disputou a revisão do Plano Diretor. Apresentamos emendas em que propusemos medidas de ação afirmativa e reparação. Depois de muita pressão, as emendas não foram integralmente atendidas, mas a observação da manutenção do perfil racial da população do bairro foi garantida no inciso 8 do artigo 314 do Plano Diretor (Lei 17.975/2023).
§ 8° O perímetro do TICP Bixiga, delimitado nos termos da Resolução 22/2002 do Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, fica excluído da Zona de Estruturação Urbana até que seja formulado seu plano específico de reordenamento do território, conforme o § 6º deste artigo, que deverá incluir articulação com políticas habitacionais que garantam a manutenção da população residente e do perfil racial deste perímetro, usando como parâmetro o perfil racial do último censo.” (grifo nosso)
Sabemos que esse passo inicial dá apenas um lastro legal para futuras mobilizações, mas essa é a primeira vez que a legislação na maior capital do país tem uma normativa específica e deliberada para o enfrentamento ao embranquecimento e a segregação racial.
Partindo da fundamental garantia da presença da população negra no Bixiga, o Mobiliza também compreende necessária a permanência da memória do Quilombo brevemente aqui contada. Como dito anteriormente, além das peças encontradas, foram reveladas estruturas que provavelmente datam da canalização do rio, drenagem de águas pluviais e edificações.
Urge que estas estruturas sejam consideradas no contexto em que estão, ou seja, assim como é solicitada a manutenção das peças de pequeno porte no território, é imprescindível que o projeto da futura estação do metrô seja readequado de modo que incorpore estas
estruturas. Se há diversas estações mundo5 afora que revelam e valorizam a história local ao incorporar tais elementos arquitetônicos, por que perder a oportunidade de realizar movimento em sentido semelhante em São Paulo?
Em junho de 2024 foi lançado um manifesto6 assinado por mais de 250 arquitetos, engenheiros, arqueólogos e especialistas em memória e patrimônio reafirmando a relevância da manutenção das estruturas e que seja feita uma estação de metrô histórica. Qual a justificativa plausível em arriscar danos às estruturas removendo-as do Bixiga, território que lhes dá contexto e sentido de existência?
É preciso enfatizar que o Mobiliza é uma articulação comunitária, que se sustenta por meio de ações voluntárias e da venda de camisetas. Sua capacidade de articulação está intrinsecamente ligada ao aquilombamento que o Bixiga propicia. A imaginação política radical das exigências e propostas são fruto de uma consciência sobre a questão racial no país, que não é obtida e difundida nos espaços prestigiados de elaboração política e intelectual. A manutenção desse ambiente, da sua historicidade e materialidade, é a essência da luta que estamos travando.
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