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Terras da União: Patrimônio do mercado brasileiro?

*Por Júlia Pereira

O Brasil tem um déficit habitacional de 7,797 milhões de moradias. Utilizando a média utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 2,9 pessoas por domicílio. Isso significa que o país tem hoje mais de 22 milhões de pessoas vivendo sem moradia digna, ou seja, em domicílios precários, aglomeradas ou impossibilitadas de arcar com o custo do aluguel.

Observar os números do déficit habitacional faz pensar que o país não possui imóvel suficiente para toda a sua população. Pelo contrário, a União administra e mantém hoje mais de 700 mil imóveis entre prédios, lotes e terrenos, dos quais 55 mil estariam aptos para venda. Os planos, segundo enfatizou o secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia, Diogo Mac Cord, durante o lançamento do Feirão de Imóveis SPU+ no Rio de Janeiro, é o de arrecadar R$ 100 bilhões com as vendas até o final de 2022.

Chega a ser contraditório ter tanta gente sem moradia digna, ou até mesmo sem nenhuma moradia, enquanto o Estado tem sob seu guarda-chuva milhares de imóveis que poderiam e deveriam ser convertidos à habitação social. Estado este, inclusive, que tem por obrigação construir moradias e melhorar as condições habitacionais à população, de acordo com o artigo 23, IX da Constituição Federal de 1988, para garantir o direito à moradia previsto no artigo 6º da carta cidadã.

Tal cenário é naturalizado numa economia pautada pela especulação imobiliária, que, conforme observa Alexandra Reschke, que esteve à frente da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), “privilegia a lógica de auferir lucro com seu patrimônio, ao invés de priorizar o interesse público e social dessas áreas”.

A lógica mercadológica das terras é antiga. Para ser mais exata, data de 1850, com a promulgação da Lei de Terras, quando o direito se restringiu a quem poderia negociar a compra com a União, excluindo grupos como pessoas afrodescendentes que foram escravizadas. É a partir desse sistema que se evidencia a priorização do lucro em relação ao social.

Priorização essa que, em teoria, não poderia acontecer, já que o cumprimento da função social da propriedade é dever previsto em diversas passagens da Constituição Federal de 1988, como no artigo 5º XXIII como direito fundamental, e  no artigo 182 § 2º, que trata da política urbana.

A função social da propriedade é tema constante quando se trata das terras sob posse de particulares, mas mesmo as terras que pertencem à União devem cumprir seu papel social. Ou melhor, nas palavras do constitucionalista Sílvio Luís Ferreira da Rocha, a propriedade pública é e não tem função social.

Por outro lado, como já apontado nesse texto, mesmo tendo obrigação de cumprir a função social da propriedade e o dever de garantir o direito à moradia a sua população, o Estado brasileiro, especialmente no último período, age como se estivesse do lado privado da coisa e prioriza o lucro a partir da especulação imobiliária.

O órgão responsável pela administração das terras da União enfrentou algumas mudanças nos anos 2000 a fim de tornar a função social do patrimônio público federal regra e não exceção. Logo no início do primeiro mandato, em 2003, o ex-presidente Lula definiu que a gestão da SPU seria orientada para atender questões sociais, econômicas e ambientais. A democratização da gestão do patrimônio da União valorizou a função socioambiental das terras públicas, não apenas arrecadatória, para que fossem tratadas não apenas como propriedade estatal, mas sim tratadas como patrimônio do povo brasileiro.

As terras públicas não tiveram a mesma condução durante o mandato de Temer. A herança deixada pelo governo golpista à política urbana foi o entendimento de que as terras da União são terras de poucos, contrário à “terra de todos” do governo Lula. Exemplo disso é a Lei nº 13.465/2017, que já na sua origem se demonstrou ser unilateral, já que nasceu a partir da MP 759, ou seja, sem debate público.

A Lei 13.465 alterou o modelo de regularização fundiária no meio rural, urbano e na Amazônia Legal. Conhecida pelo meio progressista como “Lei da Grilagem”, a legislação beneficiou a tomada de terras da União por particulares ao facilitar a privatização em massa dos bens públicos, enfraquecendo lutas travadas por décadas no país, como a luta por reforma urbana que garanta o direito à moradia para todos e todas.

O grupo mais prejudicado pela lei de Temer foi o mesmo que Lula tentava incluir em suas políticas: o povo pobre, em maior situação de vulnerabilidade, sem moradia digna, colocado em segundo plano enquanto o lucro da venda das terras se sobrepõe.

Esse mesmo grupo é deixado em último lugar na lista de prioridades do governo atual, ou melhor, é alvo do desmonte das políticas promovidas pelo (des)governo, como aquela que esvaziou o maior programa habitacional do país – o Programa Minha Casa Minha Vida.

Ingenuidade nossa acreditar que o governo iria cumprir suas obrigações constitucionais em vez de se prestar ao papel de especulador e expor seus imóveis com destaques numa vitrine, enquanto do lado de fora 20 mil famílias passaram, no último ano, a morar nas ruas, dividindo as calçadas, viadutos e barracões com outras milhões que já haviam virado números antes mesmo da pandemia.

*Júlia Pereira é jornalista e Coordenadora de Comunicação do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU).

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