Por Jacques Távora Alfonsin
Advogado. Procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul. Coordenador da ONG Acesso – Cidadania e Direitos Humanos. Membro Honorário do Instituto Brasileiro de Direito Urabnístico – IBDU.
Não há possibilidade de se revogar o passado, como se revogam leis e se modificam sentenças. Assim, as muitas e mortíferas execuções judiciais, concedidas sem medida criteriosa dos seus efeitos, desapossando multidões pobres de suas moradias, em favelas urbanas e acampamentos rurais, são irreversíveis nos seus trágicos e materiais efeitos.
Elas ferem, humilham, violentam e matam pessoas, aí incluídas crianças, idosas/os, doentes, sob a incrível “justificativa” de estarem simplesmente cumprindo a lei. Como essa sempre tem mais de uma interpretação, a dependência de qual delas deva prevalecer, aquela do risco patrimonial geralmente supera qualquer escrúpulo sobre o que vai acontecer depois, doa a quem doer, sofra quem deva sofrer, mesmo no caso de essa dor se disseminar por milhares de outras pessoas, também elas ironicamente identificadas pela lei como “sujeitos de direito.”
De vez em quando, no meio desse primarismo decisório, desumano, injusto e até inconstitucional em grande número de casos, alguma exceção se abre, a verdade da sua manifesta insensibilidade social e aberração jurídica aparece despida daqueles subterfúgios ideológicos nos quais as licenças judiciais para a força pública agir contra essas multidões costuma se esconder.
Foi o que aconteceu no dia 13 deste primeiro mês do ano de 2016, conforme notícia publicada no site do Supremo Tribunal Federal:
“O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, no exercício do plantão da Corte, deferiu liminar em Ação Cautelar (AC 4085) ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP) para suspender a ordem de reintegração de posse de uma área de um milhão de metros quadrados em Sumaré (SP) ocupada por mais de duas mil famílias, conhecida como Vila Soma. O ministro entende que o imediato cumprimento da operação de retirada dos ocupantes, agendada para o próximo domingo (17/1), “poderá catalisar conflitos latentes, ensejando violações aos direitos fundamentais daqueles atingidos por ela”, diante da ausência de informações sobre o reassentamento das famílias. {…}
Ao deferir a liminar, o ministro Lewandowski citou os exemplos dos episódios recentes da desocupação da área do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), e de um antigo prédio na Avenida São João, na capital paulista, para destacar o risco considerável de conflito social em situações semelhantes. Lembrando que a manifestação do Judiciário tem como objetivo principal a pacificação de conflitos sociais, observou que a retomada de posse pode ser vista como exacerbação do litígio em questão, “em especial quando é levada a efeito por força policial desacompanhada de maiores cuidados com o destino das pessoas retiradas”.
Não é de hoje que defensoras/es públicas/es, Associações de moradoras/es, o Instituto Polis, o IBDU (Instituto brasileiro de direito urbanístico) Comissões de direitos humanos da OAB e do IAB, o FNRU (Forum nacional da reforma urbana), o MNLM (movimento nacional de luta pela moradia), o MTST (Movimento dos trabalhadores sem teto), ONGs defensoras de direitos humanos, pastorais sociais das Igrejas e outras organizações de povo, denunciam mais do que a inconveniência, a irracionalidade manifesta de o Poder Judiciário mandar desapossar, com o uso violento da Força pública, multidões pobres de suas casas, se a tanto pode se dar nome aos seus abrigos precários.
Preside esse tipo de postura um fortíssimo preconceito ideológico, de interpretação da realidade e das leis que, entre o direito de propriedade – por mais ilegal e abusivo o uso da terra com que esteja sendo exercido – e a vida das pessoas, dá preferência ao primeiro, independentemente de todas as más consequências daí derivadas.
Há vinte anos, durante a II Conferência internacional do Habitat, realizada em Istambul, as organizações populares de defesa dos direitos humanos inerentes à moradia, se reuniram em paralelo a oficial. Lá, a representação brasileira não oficial já defendia, unida a de muitos outros países, o que o atual presidente do STF determina, contrariamente ao que se tem chamado de despejos forçados. Que as ordens judiciais do tipo daquela por ele suspensa evitem criar “conflitos latentes, ensejando violações aos direitos fundamentais daqueles atingidos por ela”, diante da ausência de informações sobre o reassentamento das famílias.”
Sem violência, portanto, e sem destino garantido às vítimas desse tipo de ordem judicial, ela não pode e não deve ser cumprida, “em especial quando é levada a efeito por força policial desacompanhada de maiores cuidados com o destino das pessoas retiradas”.
Trata-se de um precedente de extraordinária importância para todo o país, devendo-se reconhecer às nossas Defensorias Públicas, especialmente a de São Paulo no caso, o mérito de sua competente e incansável perseverança na prestação do seu serviço de defesa do direito humano fundamental de moradia.
Entre outras razões a serem defendidas pelo Brasil na Conferência internacional Habitat III, que será realizada em Quito, no Equador, no mês de outubro deste 2016, o direito de moradia das/os brasileiras/os há de se lembrar desse justo, oportuno e legal despacho.
É de se esperar também que o mandado do Presidente do STF, em tudo semelhante a outras iniciativas de Tribunais dos Estados, abrindo possibilidades de mediação em casos tais, não sujeitas, exclusivamente, ao Código de Processo Civil, impeçam a repetição de decisões judiciais socialmente desastrosas como aquelas por ele mesmo lembradas. Não se acrescente à injustiça social, como causa de pobreza imposta a milhões de brasileiras/os pobres, a cumplicidade judicial favorável aos seus efeitos.