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Parque Minhocão: um curativo verde sobre a cicatriz da ditadura

Por Patryck Araújo Carvalho *

Demolir o Minhocão ou iniciar a implantação de um parque é a discussão que mobilizou a capital paulista nos dias que antecederam o carnaval. Desde que surgiu a ideia dessa imensa ponte rasgando quase 4 km da cidade, os paulistanos se dividem entre sua necessidade e sua monstruosidade. Numa cidade que não consegue manter vivo o jardim vertical da Avenida 23 de Maio, esse imenso jardim flutuante tem grandes chances de minguar em alguns anos, como minguado está o debate público que a Prefeitura deveria promover na cidade.

Para quem não é de Sampa, Minhocão é o nome popular da via elevada que liga a Praça Roosevelt, no centro, ao Largo Padre Péricles, nas Perdizes, permitindo uma ligação viária Leste-Oeste na cidade. De forma espetacular, o Minhocão foi erguido em rápidos 14 meses e entregue como presente à cidade de São Paulo, no seu aniversário de 1971. Foi construído pelo prefeito Paulo Maluf, indicado pela ditadura para um mandato de 02 anos. O jovem político precisava deixar sua marca na cidade. Deixou essa cicatriz que custou, em dinheiro da época, 40 milhões de cruzeiros, o que hoje equivaleria a quase R$ 220 milhões.

Para o dia da inauguração, a Prefeitura de São Paulo distribuiu um convite que retumbava: “a obra, que é a maior no gênero em toda a América do Sul, eternizará em sua denominação, uma das grandes figuras da revolução de 1964”. No dia da inauguração, um carro quebrado provocou um grande congestionamento. De lá para cá, deixou de ser Costa e Silva e foi rebatizado como Elevado Presidente João Goulart.

As polêmicas em torno dessa obra de arte da engenharia nacional vão para além da nomenclatura. Reportagem do jornal Estadão, de 01 de dezembro de 1970, sentenciava: “Elevado, o triste futuro da avenida”, numa espécie de réquiem para aquela que teria sido uma das avenidas mais chiques de São Paulo, ladeada pelos bairros da elite paulistana de então.

Esse mesmo jornal perguntou, nos dias que antecederam a inauguração, “Quem diz que o Minhocão é útil?”. Perguntou e já respondeu, pois a mesma reportagem dizia que “em São Paulo foi construído o maior viaduto da América Latina, que acompanha as depressões e elevações do terreno, fazendo com que nos vejamos numa verdadeira montanha russa. Mas São Paulo não é só a zona oeste. Para a cidade, seria mais rentável o metrô.”

Nem bem completava cinco anos e já se discutia a demolição da via elevada. Ao longo dos últimos anos, o seu uso como via de tráfego de automóveis teve várias restrições. Em 1976, passou a ser fechado à noite, da meia-noite às 5:00 h. Em novembro de 1989 a restrição aumentou, com fechamento de segunda a sábado, das 21:30 até às 6:00 h e fechamento total aos domingos. Desde 2016 passou a fechar às 15:00 h dos sábados, não abrindo aos domingos.

No ano de 2006, a Empresa Metropolitana de Urbanismo – EMURB, anunciou a demolição do elevado e organizou um concurso de ideias para a região. Nos finais de semana e feriados possui um uso intenso, com gente correndo, caminhando, flertando, pedalando. O corredor suspenso de carros vira área de lazer nessa cidade tão carente de espaços qualificados no centro e, especialmente, nas periferias.

O Plano Diretor de 2014 selou o destino do Minhocão ao estabelecer que uma lei específica determinará “a gradual restrição ao transporte motorizado”; definirá “prazos até sua completa desativação como via de tráfego, sua demolição ou transformação, parcial ou integral, em parque”.

O parque já existe no papel. A Lei Municipal no 16.833/2018 criou o Parque Minhocão e eliminou a possibilidade de demolição, apontando duas hipóteses de destinação: transformação parcial ou transformação integral em parque. Determinou que o Poder Executivo deverá apresentar Projeto de Intervenção Urbana (PIU), garantindo a “gestão democrática e participativa, das etapas de elaboração, implantação, execução e avaliação do PIU” e ouvindo o Conselho Municipal de Política Urbana – CMPU. Também é tarefa atribuída ao PIU a “adoção de instrumentos urbanísticos de controle e captura da valorização imobiliária decorrente das intervenções promovidas pelo Poder Público na área de impacto desta Lei”. A lista de tarefas e diretrizes da Lei, por enquanto, foi ignorada. Disso não se ouve falar.

Assim, de forma também espetacular, o prefeito Bruno Covas resolveu e anunciou a implantação do primeiro trecho do Parque Minhocão, entre a Praça Roosevelt e o Largo do Arouche, numa extensão de 900 m, a um custo de quase R$ 40 milhões (dados não oficiais). Tal qual o prefeito que implantou, o prefeito atual também quer deixar sua marca, sem diálogo com a cidade.

Sabe-se que o Arquiteto Jaime Lerner, contratado pelo SECOVI-SP, presenteou a cidade com um “projeto” para o parque . O arquiteto que conduziu o projeto dentro do escritório Jaime Lerner Arquitetos Associados apontou que “a vizinhança já começou a transformar o local com algumas atividades esporádicas, principalmente durante o fim de semana. É a sinalização da mudança. Depois de pronto, será como a Orla do Guaíba, o centro de São Paulo vai mudar radicalmente”. Tenho especial preocupação com as orlas depois de ter ouvido, num evento em Manaus, que o pior cenário para os moradores tradicionais é quando a beira de um rio vira orla. A orla é moderna, a orla é chique, a orla é exclusiva. A orla expulsa, pois a orla é para poucos.

Esse não é primeiro projeto que Jaime Lerner desenvolveu para a cidade de São Paulo, aliás é antiga a relação entre tucanos paulistas e o arquiteto e urbanista paranaense. Em 2008, na gestão Serra-Kassab, o Escritório Jaime Lerner Arquitetos Associados, também sob os auspícios do SECOVI-SP e da ONG São Paulo Minha Cidade, elaborou uma proposta para a região da Luz, ou como chamaram, “Nova Luz”.

Em janeiro de 2017, logo no início da sua gestão como prefeito da capital paulista, João Dória anunciou que encomendaria um projeto para o “Centro Novo”, “uma mudança urbanística e a modernização da região central”. Mais uma vez, o escolhido foi Jaime Lerner Arquitetos Associados, “o projeto foi oferecido à gestão municipal pelo Secovi/SP, por meio de um termo de acordo de cooperação técnica, sem custos para o município”.

Todos esses projetos têm uma característica em comum: a modernização e a chamada revitalização são alcançadas a partir da higienização do território, eliminando os indesejáveis. É preciso auscultar essa imensa generosidade, bem como entender os modelos de urbanismo que justificam essas escolhas repetidas que apontam, invariavelmente, para balcões de negócios com a cidade.

Em várias cidades, os centros urbanos, outrora abandonados, serão as novas orlas para o mercado imobiliário. Há tempos, os centros de quase todas as capitais brasileiras deixaram de despertar interesse para as elites econômicas e se configuraram como importantes territórios populares, espaços para morar ou desenvolver atividades econômicas de subsistência.

No caso do entorno do Minhocão, os incômodos são tantos que o baixo preço do aluguel permitiu que trabalhadores de baixa renda pudessem residir no Centro, como demonstrou em recente artigo o Professor João Sette Whitaker. Ocorre que o interesse imobiliário ressurgiu e pipocam lançamentos de minúsculos apartamentos, que a depender da localização, são vendidos em uma semana. Os movimentos por moradia e todos os que passaram anos defendendo a presença da moradia popular na região central, provavelmente, serão atropelados pelos lofts e estúdios para investidores e uns poucos que podem pagar R$ 10 mil o metro quadrado para morar no Centro.

Basta um presente, um guarda-sol na areia, para que o espetáculo se processe. E as grandes cidades brasileiras são, sistematicamente, presenteadas com “projetos de orlas” que prometem mudar radicalmente a paisagem urbana e trazer o “novo”. E mudam, criando cenários para novos negócios urbanos que não admitem a presença de determinados usos e pessoas. Projetos que não resolvem antigos nós e dramas urbanos, mas que abrem frentes para oportunidades de ganhos estratosféricos com a valorização imobiliária promovida por esse tipo de obra. Os especialistas chamam de gentrificação a expulsão dos indesejados, aqueles que ninguém quer como vizinhos, mas que, teimosamente, precisam de espaços na cidade.

Tais presentes incidem nas prioridades das cidades ignorando por completo as necessidades mais óbvias e a legislação urbana, especialmente os Planos Diretores. Além do próprio elevado, que Maluf transformou em prioridade no seu curto primeiro mandato, São Paulo teve a ponte Estaiada e o Nova Luz; o Rio de Janeiro teve o Porto Maravilha, com o emblemático Museu do Amanhã; Belo Horizonte, o novo Centro Administrativo, para citar uns poucos. Mesmo as cidades pequenas têm seus arroubos de espetáculos, edificando portais caricatos e pretensamente monumentais, em cenários de pura carência e precariedade.

Esses projetos têm nomes adjetivados – novo, maravilha, moderno – e são, quase sempre, anunciados como processos de modernização que prometem uma maravilhosa cidade do amanhã. Um amanhã que jamais chega para a maioria da população que continua condenada a viver longe, pendurada em morros, socada em cortiços, com as vidas em risco permanente. As demandas culturais, turísticas e ambientais são colocadas a serviço, não do bem comum, mas do mercado imobiliário de exclusividades. A tática parece boa e atrai muitos apoios, como quem diz: mas é um parque!

Um caso emblemático do urbanismo do espetáculo ou urbanismo imobiliário é a proposta de ocupação do antigo Cais José Estelita inserido no projeto do “Novo Recife”, com cerca de 12 torres para uso residencial, escritórios e serviços de altíssimo padrão. O Cais José Estelita, às margens do rio Capibaribe, é um terreno de 10 hectares (100 mil metros quadrados) que pertenceu à Rede Ferroviária Federal (RFFSA). Com a extinção da RFFSA, o imenso terreno foi incorporado ao patrimônio da União, tornando-se um importante imóvel público na região central de Recife. Mas como há pressa em se desfazer de patrimônio público, foi leiloado em 2008, tendo sido arrematado pelo Consórcio Novo Recife (formado pelas empresas Ara Empreendimentos, GL Empreendimentos, Moura Dubeux Engenharia e Queiroz Galvão) por R$ 55,4 milhões.

A proposta gerou uma das mais importantes mobilizações populares dos últimos anos, o Movimento #OcupeEstelita, com repercussão nacional e internacional. O terreno público que poderia ser utilizado para usos de interesse da cidade e da coletividade foi transferido para a iniciativa privada, com vários questionamentos sobre o leilão e o preço pago pelos arrematantes.

Mesmo com todo o vigor do Movimento #OcupeEstelita, os anúncios para venda de apartamentos a partir de R$ 1,8 milhões no Mirante do Cais Norte, estão disponíveis no site de uma das construtoras que arremataram o terreno. Na madrugada do dia 25 de março, a cidade de Recife foi despertada pelos tratores demolindo galpões no Cais José Estelita.

A obra que estava embargada teve a licença expedida em tempo recorde, tão logo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) concluiu os estudos no local: o estudo arqueológico do IPHAN foi concluído na segunda-feira (18/03); na quinta-feira (21/03), a Construtora Moura Dubeux fez o pedido para licença de demolição; na manhã da segunda-feira (25/03), a Prefeitura de Recife autorizou as demolições. Nessa mesma segunda-feira, à noite, os movimentos sociais voltaram a ocupar o Cais, contra a demolição. O #OcupeEstelita volta à cena. Recife tem emitido bons sinais para o país, no combate à cidade para poucos.

Entretanto, os projetos do urbanismo do espetáculo suplantam, sem cerimônia, as prioridades das cidades indicadas nos Plano Diretores. Se preciso, os seus patrocinadores conseguem, também sem cerimônia, a aprovação de leis específicas nas câmaras municipais para tirar esses projetos do papel. Na teoria, o Plano Diretor é uma Lei Municipal, elaborada com a participação da sociedade civil para organizar o crescimento e o funcionamento da cidade; normatizar os instrumentos definidos na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade, indicando em que lugares da cidade eles podem e devem ser aplicados; serve para orientar as prioridades de investimentos da cidade.

Um dos maiores objetivos de todo Plano Diretor é coordenar as ações dos setores público e privado, de modo a garantir a transparência da administração pública e a participação da sociedade na gestão da cidade, compatibilizando os interesses coletivos e distribuindo de forma justa os benefícios e os ônus da urbanização.

O Plano Diretor de São Paulo foi aprovado em 2014, após 09 meses de debates e, segundo a página do Plano Diretor da Câmara Municipal, “um amplo debate sobre os caminhos para o desenvolvimento da cidade foi realizado durante as 44 Audiências Públicas que aconteceram entre outubro e dezembro de 2013 e as outras 8 que ocorreram no mês de abril e mais 6 desde que o Projeto foi aprovado, em 1a votação”. A atual gestão municipal foi eleita em 2016 e se iniciou em 2017, sob a vigência deste Plano Diretor que, inclusive, foi premiado em concurso da ONU-Habitat de melhores práticas urbanas. É justo um administrador querer deixar suas marcas na cidade, mas isso pode e deve ser feito respeitando as prioridades indicadas no Plano Diretor.

O Plano Diretor de São Paulo traz, no Quadro 07, uma lista de 273 parques municipais existentes e propostos, ou seja, relativamente ao tema parques as prioridades estão claramente estabelecidas. São 102 os parques propostos e 50% destes são parques lineares ou naturais, portanto importantes também para a preservação e recuperação de ecossistemas naturais urbanos e cursos d’água – aspectos relevantes na priorização dos recursos financeiros de uma cidade que passa boa parte do ano assolada pelas águas das chuvas.

O Orçamento da cidade de São Paulo para 2019 previu R$ 291 milhões para a Gestão Ambiental. Desse montante, R$ 40 milhões para investimentos, praticamente o mesmo valor da implantação do primeiro trecho do Parque Minhocão. Para construção e implantação de novos parques na cidade inteira estão previstos R$ 12,6 milhões. Logo no início dessa gestão, a concessão de parques emblemáticos despontou como prioridade. Mas o Parque Minhocão passou na frente de todos os parques previstos, fez esquecer a austeridade financeira e os argumentos que justificaram os planos de concessão de vários parques municipais, dentre eles o Ibirapuera.

Esse projeto decidido e anunciado atropelando as regras da Lei Municipal que criou o Parque Minhocão não resolve nenhum dos problemas decorrentes da existência do Elevado. Deixa sem solução adequada a ligação leste-oeste – como não há proposta de transporte coletivo, perde-se a oportunidade de colocar novos modais no centro das discussões, superando a lógica do transporte individual motorizado.

Nenhuma proposta para controle e captura da valorização imobiliária – para onde irão os moradores que há quase 50 anos suportam o vizinho incômodo e serão expulsos com a provável explosão do valor do metro quadrado? Os baixios do elevado serão o que, além de um possível jardim de zamioculcas? Quais as propostas para os pequenos comerciantes, para os moradores de rua? O que justifica a absoluta priorização do Parque Minhocão? Quanto custa efetivamente a sua implantação e manutenção? Quem lucrará com esse parque? Por que não se discute todas essas questões antes do início das obras?

Há muitas perguntas não feitas e muitas outras sem respostas. O curativo verde nem de longe amenizará os danos dessa imensa cicatriz urbana, ainda que deixe alguns corações mais confortáveis.

Texto publicado originalmente no Justificando

*Patryck Araújo Carvalho é arquiteto e urbanista, colaborador do BR-Cidades e Coordenador Regional Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU).

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