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A interrupção do auxílio-aluguel e a expulsão de famílias da periferia de São Paulo

Recentemente, a Prefeitura Municipal de São Paulo anunciou um corte no pagamento do Auxílio Aluguel de 4.879 famílias, à revelia das assistentes sociais responsáveis pelo acompanhamento do serviço junto aos beneficiários.

*Por Fernanda Pinheiro da Silva

A interrupção chegou a ser efetuada para o mês de agosto, contudo, após questionamentos do Ministério Público de São Paulo, via promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, a administração municipal foi obrigada a realizar todos os pagamentos de modo retroativo para atender uma liminar que impediu o bloqueio proposto.

Se a alegação do poder público era que a medida serviria para combater fraudes e coibir desvios no uso da verba, uma melhor compreensão do benefício permite identificar problemáticas no embasamento de uma ação deste porte.

Caracterizado pelo pagamento mensal de verba pecuniária no valor de R$400,00, o auxílio-aluguel tem como objetivo custear parte das despesas com locação de moradia. O auxílio destina-se a famílias com renda máxima de R$2.400,00 – ou R$500,00 per capita – e até junho deste ano era concedido para casos emergenciais, tais como incêndios e alagamentos, mediante remoções em áreas de risco ou para viabilizar intervenções públicas, e em situações de extrema vulnerabilidade. É importante dizer que atualmente o benefício responde pela única alternativa de atendimento habitacional provisório ofertada pelo município de São Paulo, e beneficia 27.111 famílias.

Este ano, a atual gestão municipal alterou alguns critérios para a prestação do benefício. A gestão Bruno Covas efetuou um corte no benefício, retirando do seu escopo as situações de extrema vulnerabilidade, mesmo sem apresentar estudos de impacto ou proposta de compensação. Se por um lado a medida explicita preocupações internas à pasta com a gestão orçamentária do serviço, por outro, cabe ponderar que a sua adoção por parte do poder público vinha sendo adiada devido à falta de políticas de apoio aos grupos que deixariam de ser assistidos pelo auxílio-aluguel.

Outro aspecto relevante diz respeito às condições para o recebimento do benefício. Quando concedido para situações emergenciais ou de extrema vulnerabilidade, o auxílio possui caráter temporário e é mantido por doze meses, passível de uma única renovação por igual período. Entretanto, nos casos de remoção – seja para intervenção pública, obras de urbanização ou iminência de risco em ocupação consolidada –, o benefício se vincula à garantia de um direito adquirido, e deve ser mantido até que o poder público oferte novas condições definitivas de habitação. Por mais que não haja até o presente momento a sistematização oficial sobre os motivos de inclusão dessas famílias como beneficiárias do auxílio-aluguel, um trabalho realizado em abril de 2016 pela Secretaria de Habitação evidenciou que 82,8% do total de titulares residiam em favelas antes de receber o benefício, e ao menos 1/3 do total das famílias cadastradas havia sido removida por obras de urbanização. Também é importante frisar que até o final de 2017, 13.499 famílias recebiam auxílio-aluguel em função de remoções para viabilizar obras municipais no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

A suspensão do auxílio-aluguel e a expulsão de famílias da cidade de São Paulo 

Dentro do regimento que regula o auxílio-aluguel há um ponto que é necessário destacar: é proibido a concessão do benefício para famílias residentes fora dos contornos administrativos do município. Com base neste regramento, a Secretaria Municipal de Habitação se viu no direito de suspender o benefício de todos aqueles que haviam sacado o auxílio por mais de quatro vezes sequenciais em agências bancárias localizadas fora da capital paulistana. A conexão demonstrava fragilidades, pois a retirada do depósito em outras municipalidades não pode ser utilizada como prova da residência do titular do benefício fora do município de São Paulo. Essa contraposição foi ratificada pela liminar que exigiu o pagamento retroativo dos cortes efetuados. No entanto, tamanha incoerência não impediu a adoção da suspensão dos pagamentos por parte do poder público. Levando em consideração as dificuldades de comunicação entre prefeitura e beneficiários do auxílio-aluguel, pode-se deduzir que no início de agosto a maior parte dessas famílias tomou conhecimento sobre os cortes pelo mesmo caixa eletrônico que denunciou seus saques fora de uma suposta legalidade altamente questionável.

Além disso, ao examinar a fundo as justificativas para a suspensão dos pagamentos, chama atenção que 80,5% do total se refere a famílias que sacaram o dinheiro em agências da Região Metropolitana de São Paulo, a maioria no município de Embu das Artes. Como já apresentado, a maior parte dos beneficiários foi expropriada de condições já precárias e periféricas de habitação por meio de intervenções públicas e situações emergenciais. Neste sentido, para elas, a concessão do auxílio-aluguel já constitui um agravamento das condições de moradia e vulnerabilidade social. Após remoções, deslizamentos ou incêndios em Paraisópolis, Heliópolis, Sapé, São Francisco, Rocinha Paulistana, Heliópolis, Viela da Paz, Jardim Letícia, Real Parque e Moinho, apenas para citar as dez favelas de origem da maior parte dos titulares do Auxílio Aluguel, muitas dessas famílias se viram impossibilitadas de permanecer na mesma localidade. Essas pessoas enfrentaram de modo concreto a necessidade de garantir condições mínimas de moradia com um apoio monetário de apenas R$400,00 mensais. Neste quadro, é imprescindível dizer que o preço de locação de barracos nas dez favelas citadas pode superar em muito a quantia ofertada pelo poder público. Além disso, cabe pontuar que esse aumento dos preços de locação no mercado informal de moradia também deve ser compreendido como um dos desdobramentos desta modalidade de atendimento habitacional

O problema não é o auxílio, mas a sua função política urbana

A atenção para a escala metropolitana implicada na questão habitacional permite reconhecer a complexa teia de relações envolvida em decisões como a anunciada pela Prefeitura. Não há dúvidas de que a localização das agências bancárias utilizadas para a retirada do subsídio é um dado relevante para retomar o diálogo com os beneficiários do serviço. Entretanto, no âmbito da política habitacional, é inaceitável que as medidas adotadas pelo poder público comprometam o direito à moradia adquirido por famílias removidas, ou dispense a oferta de alternativas habitacionais consistentes para pessoas em condições de alta vulnerabilidade, como é o caso da crescente população em situação de rua.

De modo geral, as modalidades provisórias de atendimento habitacional estão ligadas ao descompasso entre a execução de intervenções públicas e a oferta de habitações de interesse social. O auxílio-aluguel não cria este descompasso, contudo, é preciso observar de que modo ele potencializa a distância temporal entre esses dois processos. Totalmente desvinculado de maiores responsabilidades por parte do poder público, e sem qualquer participação e controle por parte do Conselho Municipal de Habitação, esta modelagem criou condições legais para a oferta de um subsídio imediato e monetário em troca do dever público de garantir condições mínimas de moradia, ainda que temporárias. Como consequência, o auxílio-aluguel capturou parte significativa dos investimentos públicos em outras formas de locação subsidiada, como o Programa Locação Social, ou mesmo para a construção de novas alternativas neste sentido, como a “Parceria Público Popular” (PPPop) formulada pelo Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). Além disso, sua magnitude e funcionamento se tornaram centrais para a execução continua de processos reais de expropriação.

Tributário de uma regulamentação controversa desde a sua gênese, com a criação do Programa Ações de Habitação em 2009, é preciso refletir sobre o papel do auxílio-aluguel dentro das estratégias de planejamento urbano do município. Neste sentido, ao invés de criminalizar e punir os beneficiários de um serviço de moradia social tão precário, a Prefeitura de São Paulo deveria se perguntar por que a implementação da política habitacional do município tem contribuído para a expulsão de pessoas da periferia da cidade para as periferias da metrópole.

*Fernanda Pinheiro da Silva é geógrafa, mestra em geografia humana pela FFLCH-USP, atua como pesquisadora na FGV e parceira do BrCidades.

Texto publicado originalmente no Justificando na coluna Questões Urbanas, uma parceria entre IBDU e BrCidades.

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