Sob críticas sociais e Lava-Jato, o Cais José Estelita, em Recife, é um problema
Por Fernanda Costa, Leonardo Cisneiros e Tereza Mansi*
No dia 25 de março de 2019, Recife despertou com a notícia da retomada da demolição dos galpões do Cais José Estelita. O destino do complexo, localizado em uma faixa de terra de 10 hectares na região central da capital pernambucana, vem sendo discutido há quase duas décadas. A disputa acirrou em 2008, logo depois que o Consórcio Novo Recife arrematou em leilão a área que pertencia à Rede Ferroviária Federal e apresentou um projeto de urbanização. A proposta vem sendo criticada por vários setores da sociedade civil e a transação foi questionada judicialmente. O negócio está sob investigação da Polícia Federal, em um desdobramento da operação Lava Jato, em Pernambuco.
Mesmo com grande resistência da sociedade, os empreendedores já colocaram algumas unidades à venda. Ao todo, o projeto prevê a construção de treze torres cuja altura varia entre 12 e 38 andares que abrigarão 14 tipologias distintas de unidades, com áreas de 34 a 282m2. Os imóveis estão sendo negociados a um custo de cerca de 10 mil reais por metro quadrado. Em uma cidade onde cerca de 70% dos moradores possui renda mensal inferior a dois salários mínimos e mais da metade da população vive em comunidades de baixa renda, com infraestrutura precária e carentes de áreas de lazer e equipamentos públicos, cabe questionar quem é público alvo do empreendimento e qual o projeto de cidade embutido na proposta. Neste cenário, é importante avaliar se a destinação de imóveis públicos para empreendimentos privados desta natureza é a melhor solução para este terreno.
Ao analisar a proposta do consórcio Novo Recife, formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, GL Empreendimentos e Ara Empreendimentos, fica evidente que se trata de uma ocupação intensiva, segregada e exclusiva de uma das últimas frentes d´água da cidade. O projeto é inadequado para aquele local que tem grande valor histórico e cultural e está no perímetro de tombamento do Bairro de São José, em uma área contígua a sítios históricos onde diversos bens patrimoniais poderão ter sua vista prejudicada pelos enormes edifícios previstos no Projeto Novo Recife. Além disso, o terreno é marco da instalação da segunda linha férrea mais antiga do Brasil, a Estrada de Ferro Recife ao São Francisco (Recife and São Francisco Railway Company), inaugurada em 1858.
Entre os problemas verificados, a tramitação do projeto do Novo Recife está eivada de irregularidades desde sua origem. Para atender aos parâmetros da lei anterior ao Plano Diretor, promulgado em 2008, foi necessário fazer uma previsão bastante ampla do direito de protocolo – garante ao empreendedor usar os parâmetros urbanísticos vigentes na data do protocolo do empreendimento, mesmo que estes tenham sido modificados por leis posteriores e vigentes na data do início da obra – e contar com a tolerância da administração municipal quanto a erros na solicitação original. Em 2015, foi feito um plano urbanístico específico para o Cais José Estelita que originou a Lei 18.138/2015 com objetivo de garantir uma aparência de legalidade ao projeto. A medida fere o princípio da impessoalidade já que implica na formulação de uma lei, que estabelece parâmetros urbanísticos mais permissivos e um coeficiente de utilização quase três vezes maior que o fixado pelo Plano Diretor, para garantir benefícios a um grupo econômico específico.
Os processos de discussão e aprovação da citada lei e dos projetos de arquitetura e parcelamento do solo foram bastante polêmicos já que as audiências públicas e os mecanismos de participação foram burlados ou forjados. Soma-se a isso o fato de que procedimentos administrativos foram criados ou desconsiderados, em um exercício de discricionariedade absoluta dos gestores municipais. A parcialidade culminou com o ato do Secretário Municipal de Mobilidade e Controle Urbano que tomou a iniciativa de liberar pessoalmente a demolição dos armazéns sem observar a aplicação dos procedimentos previstos para o caso. Atualmente, mais de 12 ações judiciais questionam o projeto, entre elas, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), proposta pelo Ministério Público de Pernambuco contra a lei nº18.138 do plano específico do cais José Estelita e seu condão de alterar o Plano Diretor.
No conjunto de problemas detectados, cabe ressaltar ainda que o projeto Novo Recife ignorou o processo realizado em 2006 pelas prefeituras do Recife e Olinda, governo de Pernambuco e Ministério das Cidades no âmbito do Projeto Recife-Olinda que, apesar das críticas, tinha como objetivo dinamizar a faixa litorânea nos dois municípios, a partir da integração e do diálogo com um conjunto de ocupações de baixa renda já existentes. A proposta do consórcio desconsidera totalmente essa diretriz e representa uma ameaça para as comunidades que estão em áreas gravadas como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) no entorno imediato do projeto. Estas comunidades serão impactadas pelas medidas impostas pela Prefeitura do Recife na revisão do Plano Diretor Municipal para flexibilizar a ocupação nessas Zonas.
O caso do projeto Novo Recife é um exemplo contundente de como as cidades brasileiras estão sendo pensadas pelo mercado e para o mercado. Mas existe resistência. Assim que souberam da retomada da obra, centenas de pessoas foram ao local para protestar contra a demolição e organizaram um acampamento no lado externo da propriedade que já está protegida por seguranças. Novamente, o Movimento Ocupe Estelita toma a frente para afirmar que “OUTRO CAIS É POSSÍVEL”. A sociedade civil e os defensores do Direito à Cidade estão unidos para reivindicar que a administração municipal assuma sua responsabilidade na construção de uma cidade mais justa. É preciso que “dos escombros” surjam moradias populares, equipamentos públicos e um projeto inclusivo que beneficie a Cidade como um todo e não apenas uma pequena parcela da população. Precisamos de um projeto para o Cais que amplie a integração da cidade em vez de contribuir para segregá-la ainda mais.
*Fernanda Costa é advogada e vice-diretora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU.
Leonardo Cisneiros é professor UFRPE e integrante do Grupo Direitos Urbanos.
Tereza Mansi é advogada popular do Centro Popular de Direitos Humanos.
Texto originalmente publicado no portal Justificando na coluna Questões Urbanas, parceria entre IBDU e BrCidades.