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NOTA TÉCNICA: Na onda do vale-tudo, autoridade é bater no povo
*Por Jacques Távora Alfonsin
jacquesjustificando

O parecer da Advocacia Geral da União (nº 00004/2017/CPPAT/CGU/AGU), de outubro de 2017, disponível na internet, está sendo rememorado agora para franquear licença, tanto à Administração direta quanto à indireta, promover o desforço imediato, inclusive com o apoio de força policial, dos seus bens imóveis, contra a ocupação desses, até “sem propositura de ação judicial.”

Indicando como assuntos do seu arrazoado, os “crimes contra o patrimônio”, a sua ementa tem a seguinte redação:

I – “Aos administradores e demais responsáveis por bens imóveis da Administração Federal Direta e indireta, incumbe prevenir e repelir sua invasão, ocupação, cessão, locação ou utilização diversa da sua destinação legal, contratual, ou administrativa e, para o fim de manter-lhes a integridade patrimonial e a continuidade dos serviços públicos a que destinados, dispõem, nos termos da lei e dos regulamentos administrativos, de prerrogativas para provocar seu desforço imediato sem propositura de ação judicial, mediante requisição de intercessão de força policial federal, estadual ou distrital e, nos casos de comprovada situação de lesão ou relevante ofensa a valores, instituições ou patrimônios públicos, de disponibilização de contingente militar federal”; Referências legislativas: Art. 37 da Constituição Federal; Decreto-lei 9.760/46; Lei 9.764/99 e Decreto nº 3.725/2001.

II – Proposta de edição de Orientação Normativa nos termos acima.

É o que, em termos jurídicos, identifica-se como auto executoriedade do ato administrativo. Em muito estreita síntese, este parecer pode ser analisado criticamente, a partir desta ementa e de alguns dos fundamentos legais que ele próprio invocou para propor uma orientação normativa, a respeito.  O nosso objetivo, aqui, é o de submeter-se ao juízo das nossas leitoras e leitores esta análise crítica, buscando demonstrar que as premissas hermenêuticas do seu arrazoado não autorizam as suas conclusões.

Entre as formas de apossamento dos bens públicos, arroladas pelo parecer como criminosas, a nossa crítica vai dar preferência à da ocupação multitudinária dos imóveis, como forma de protesto, seguramente aquela mais conhecida e utilizada pelo povo.

Para tanto, separamos nossa opinião em quatro partes, cada uma correspondendo aos fundamentos principais do parecer. A primeira, dedicada à auto executoriedade do ato administrativo em decorrência do princípio da indisponibilidade dos bens públicos, mas conformada à sua legitimidade, uma hipótese que está ausente do parecer; a segunda, dando atenção especial a duas diferenças jurídicas notáveis, ignoradas pela opinião da AGU, quando o mesmo procura apoio  no princípio constitucional da eficiência administrativa: a que existe entre ocupação e invasão de imóvel e a que existe entre interesse governamental e interesse público: a terceira, enfatizando o contexto sob o qual a ocupação de prédios públicos questiona os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade da administração publica também invocados pelo parecer; a quarta sugere, em conclusão, instrumentação jurídica capaz de levar ao Poder Judiciário pedidos de tutela do povo contrários às causas e aos efeitos deste parecer.

Auto executoriedade do ato administrativo e indisponibilidade dos bens públicos. A Administração Pública não é proprietária do patrimônio público

Conforme lê-se na ementa do parecer, ele começa por dirigir-se aos “responsáveis por bens imóveis da Administração”… como se ela fosse proprietária dos mesmos, o que já antecipa um fundamento   suficiente para comprometer tudo o que vem dito depois, mesmo com lembradas bases constitucionais e legais, uma vez que, administração, passe óbvio, não é sinônimo de propriedade.

O sempre lembrado jurista gaúcho Ruy Cirne Lima acentuava essa diferença, apontando analogias e semelhanças, mas não identidade:

A relação jurídica, na qual os bens do domínio publico e do patrimônio administrativo se inserem como objeto, é a relação de administração, relação, que aqui se nos depara como análoga, mas distinta da propriedade, Na propriedade, cabe ao proprietário a faculdade de excluir; no domínio público, quanto aos bens de uso comum, ao utente, a pretensão de não ser excluído, enquanto se adscreve no uso a destinação do bem. Salva, porém, essa diferenciação, de resto, fundamental, a analogia entre as duas situações é manifesta. Quanto aos bens do patrimônio administrativo, a analogia ainda é mais flagrante. O uso especial assemelha-se ao exercício do domínio, ainda que, aqui também, a destinação da coisa elimine todo o arbítrio na utilização dela, diretamente pelo Estado ou outra pessoa administrativa.” [1]

O princípio da indisponibilidade dos bens públicos, portanto,  sejam de uso comum, de uso especial ou dominicais, se explica e justifica por eles serem de domínio público, “eliminado todo o arbítrio sobre a utilização deles”, respeitada a sua destinação, seja pelo Estado, seja por outra pessoa administrativa. Ou seja, aqui já se pode acrescentar à crítica do parecer, mais estas duas outras improcedências hermenêuticas: as de ele pretender dar à Administração Pública a possibilidade de utilizar o desforço imediato, como se ela fosse proprietária dos bens públicos e, por cima, “sem propositura da ação judicial.”

Assim, é o próprio parecer que se encarrega de colocar como prejudicada toda a argumentação posterior que ele desenvolve com a lembrança de leis infraconstitucionais e de doutrina (essa, por sinal, visivelmente privatista), para sustentar a orientação normativa que sugere em sua conclusão. Pela simples razão de que o restante do seu arrazoado, se ainda guarda alguma ligação legal com a iniciativa pública que preconiza, perde completamente a legitimidade, sem a qual nem de ato administrativo pode-se falar.

Isso significa privar a Administração pública do poder de auto executoriedade dos seus atos? – Não. Significa sim obedecer à Constituição Federal, cumprir o que ela determina em mais de uma das suas disposições, lembradas no quarto segmento desta crítica, não  reconhecendo à mesma Administração extrapolar ou até abusar do seu poder, ao ponto de tratar como crime, indistintamente, de forma aleatória, qualquer ocupação de imóvel público, por mais legitimada e justificada que seja, sem autorização e mandado judicial.

Pois há ocupações e ocupações, não são todas iguais, algumas até visando apoiar politicas públicas que estão sendo atrapalhadas ou até impedidas por poderes privados com força e disposição para isso. A generalidade com que o parecer abre a porta para a utilização irresponsável da força pública em apoio da “autoridade”, trai uma visão preconceituosa de povo, própria de quem se distancia dele, seja por medo, seja por só compreender o exercício da autoridade usando de violência contra ele. Isso acaba levando à irresponsabilidade e à impunidade qualquer gestor direto ou indireto, encarregado de execução administrativa de política pública, sem visão estatal de cidadania.

A propósito, tanto sobre a indisponibilidade dos bens públicos, quanto à oportunidade do desforço imediato, há um acórdão do Supremo Tribunal que, sobre o primeiro, dá uma interpretação bem diferente daquela do parecer e mostra, sobre o segundo, mesmo de forma implícita, que essa indisponibilidade é dotada de outros meios. Ironicamente, o parecer  também busca apoiar sua fundamentação em  “outros meios”, à disposição da população, que não a da ocupação, distraído de que, com muito maior razão, isso vale também para a Administração:

“Ao propósito, decidiu o STF  no RE 253.885/MG: “Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. E, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa publica, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o principio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse.” [2]

Como se observa, além de sublinhar o domínio da coletividade sobre os bens públicos, identificando o Administrador como “mero gestor da coisa pública”, no mesmo rumo da lição de Cirne Lima,  demonstra que o parecer dá ao princípio da indisponibilidade dos direitos sobre os bens públicos uma rigidez que ele não tem, podendo ela cumprir a sua obrigação de defendê-lo sem a necessidade de usar de violência, pelo desforço imediato, como o parecer, de forma genérica, argumenta.

Por outro lado, dois princípios constitucionais deslembrados pelo parecer ficam sob risco iminente: o democrático e o da função social do Estado. Sobre o democrático, nem haveria necessidade de se lembrar aqui o quanto a participação direta da sociedade na administração pública – no que já se convencionou denominar de democracia participativa – vem crescendo em todo o mundo. Inclusive sob legitimação não só política, como também ética, de um modo a não se encobrir as importantes obrigações inerentes ao serviço público pelo exercício arbitrário da dominação pura e simples, sujeita apenas ao subjetivismo, não raro preconceituoso e autoritário, de qualquer gestor público.

Em advertência ao que o parecer em causa entende como respeito ao princípio da moralidade da administração pública, mais detalhadamente analisado infra, convém lembrar desde logo, dentro de toda a crise pela qual passa atualmente a administração pública do Estado brasileiro, o seguinte:

“O que cabe esperar é uma recuperação da ideia de serviço e, isso sim, uma necessária profissionalização da Administração pública, que, em qualquer caso, há de estar não só aberta à sociedade, como também atenta às demandas coletivas para oferecer serviços públicos de qualidade. Esta sensibilidade coletiva tem muito que ver, como intento demonstrar, com a Ética Pública e deve, em minha opinião, modular o conjunto das mudanças que, em alguns casos muito negativas, que se tem operado na Administração Pública. Estimular a consciência ética do funcionário supõe apostar, pela exemplaridade e a recuperação dos valores do homem que, lamentavelmente, têm caído mal conformados a favor de uma cultura perigosamente mercantilista que produz um mercantilismo selvagem e, como não, crescimento do próprio em prejuízo do coletivo. Tudo isso no marco de um regime que suponha uma substancial melhora das retribuições dos funcionários e que traga consigo um estilo de trabalho consciente da magnitude da tarefa a realizar.” [3]    

Parece claro, todavia, que a parte final desta lição, sobre a remuneração das/os funcionárias/os públicas/os, só vale, para o Brasil, para aquele grupo de servidoras/es não aquinhoados, historicamente, com privilégios abusivos, imorais, escandalosos e inaceitáveis, mas, assim mesmo, garantidos pela Administração pública do Estado. De modo muito particular, ao que ora nos ocupa, quando grupos de protesto ocupam coletivamente prédios públicos, para denunciar omissões e ações da Administração Púbica, desvios de poder e aberrações injustas, de lá sendo expulsos violentamente pela força pública, que agora vai ficar mais empoderada ainda se o parecer aqui em discussão conseguir retirar todos os efeitos que propõe.

Sobre o princípio da função social do Estado, de outra parte, igualmente ignorado pela opinião do parecer, cabe ponderar o quanto ele carece de legitimação concreta quando sujeito à simples e abstrata letra da lei, coisa notoriamente presente quando este princípio figura ali como só vinculativo de direito de propriedade e não de outros. E como o parecer, queira ou não, ao pretender proteger o patrimônio público, praticamente o confunde com o domínio privado, sem distinguir sequer fim e função do primeiro:

“Como qualquer outro instrumento à disposição do homem, a propriedade não se subtrai ao destino, a um fim que transcende o indivíduo: a função social não é tanto a característica típica como o concreto modo de manifestar-se esse fim supra ordenado, mantendo-se assim como um dado externo ainda que não eliminável.” {…} “Para entender toda a perspectiva em seus justos termos, é necessário referir-se à distinção, que não pertencia só ao pensamento jurídico, entre fim e função de uma determinada estrutura, entendendo-se o primeiro como o destino a uma tarefa abstratamente fixada e imutável e a outra como a histórica e concreta tomada de atitude frente a situações sempre renovadas e diversas. Este último é o significado que se atribui no uso jurídico mais freqüente: na forma de contraposição entre uma estrutura rígida e sempre idêntica a si mesma e uma função mutável em sua relação dialética” {…} Portanto, de compreender na atenção “funções econômicas e instituições jurídicas”, colocando o acento sobre law in action mais que sobre law in books…”[4]

O parecer ora analisado não se pode negar que esteve preocupado com os fins da administração pública, abstratamente previstos na Constituição, mas esteve bastante alheio às suas funções concretas pela qual ela existe. Questões desta relevância, como se observa, não podem ser decididas sem a intervenção do Poder Judiciário, o que precisa ser repetido para reconhecer-se inconstitucional a orientação normativa que o parecerista da AGU propõe.

Diferenças existentes entre ocupação e invasão de imóveis e entre interesse governamental e interesse público, para comprovar-se o respeito devido à eficiência da atividade administrativa do Estado, no exercício da sua autoridade.

A diferença entre ocupação e invasão de imóvel público envolve questão político-jurídica onde se encontra implicada motivação também muito diferente daquela que, de forma reducionista, o parecer as coloca como se fossem a mesma coisa. A invasão, como se sabe, e o Código Civil lembrado pelo parecer o afirma, é prática típica de esbulho, uma agressão à posse alheia de forma intencional, às vezes inspirada com o só objetivo de desapossar o possuidor anterior, como acontece freqüentemente por iniciativa grupos econômicos poderosos que invadem terras indígenas e de quilombolas, seguidamente ferindo e até matando quem lá vive, depois grilando, para dar lugar ao boi, à motosserra que desmata e ao agrotóxico que envenena a terra e todo o meio-ambiente.

A ocupação, diferentemente, tem outra finalidade. De regra, é promovida por grupos de pessoas pobres ou miseráveis sem outra alternativa de moradia ou abrigo senão a de ingressar em área imóvel privada ou pública vazia, abandonada, ou que não cumpra sua função social,  não raro com o objetivo de, no primeiro caso, forçar o Poder Público a desapropriá-la ou assentar o grupo em algum outro lugar; no segundo caso, como acontece em prédios públicos de uso especial ou dominical, como forma de advertência ao Poder Público de a satisfação urgente de uma determinada necessidade, conteúdo de um direito social estar sendo indevidamente ignorada ou prorrogada indefinidamente.

Não faltará operador do direito para impugnar essa diferença, pois no rigor puramente técnico do Código Civil,  em seu artigo 1263, a ocupação só pode ser reconhecida, como forma de aquisição de propriedade e, mesmo assim, sobre “coisa sem dono” e  “não sendo  defesa por lei.”

O certo é que, de fato, como a história ensina, são muitos os casos em que uma determinada forma de conduta coletiva tornada freqüente e corriqueira, acaba se impondo, ainda mais em casos como os que buscam garantir direitos humanos fundamentais sociais. Aí,  pouco ou nada interessa a denominação que se lhes dê. Acabam se impondo a custa de todo o sacrifício coletivo que, conforme o mesmo Jaime L.R. Muñoz, na obra supra referida, recorda o dito de Biondi: “o justo surge da consciência coletiva como necessidade e exigência, e a ela volta em forma de Direito.” [5].

O desforço imediato, segundo o parecerista, por não discernir as finalidades da invasão e da ocupação, se não reconhece essa necessidade nem essa exigência, por mais urgentes que a sua atenção e concreta resposta ágil e satisfativa se mostrem, para garantir a efetividade dos direitos sociais reivindicados numa ocupação coletiva de imóvel do domínio público, muito menos respeitará os efeitos de direito que elas comportam. A ocupação será escorraçada como “não sendo defesa por lei”, como outros artigos, até Código Civil de 1916 são lembrados pelo seu arrazoado.

Releva notar, todavia, que nem as exceções à aplicação dos artigos daquele Código, acentuadas pelo que agora vige, –  nas quais  figuram necessidades humanas, cuja satisfação é conteúdo de direitos humanos fundamentais sociais – alcançam reconhecimento contra aquela aplicação, foram cogitadas pelo parecer.

O art. 188 e seus incisos, por exemplo, do Código Civil vigente, chega ao ponto de prever não constituírem atos ilícitos os “praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido”, nem “a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão à pessoa, a fim de remover perigo iminente.”, neste último caso, “não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”

O imóvel público, note-se bem, nem é coisa alheia, é coisa própria da coletividade, de quem tem sim o direito de protestar dentro dele e é justamente a “remoção do perigo”, de que estão sendo ameaçados ou violados os seus direitos humanos fundamentais sociais  improrrogáveis, objeto dos protestos coletivos, que se encontram em causa. Não excedendo elas “os limites do indispensável”, portanto, não há como o parecer socorrer-se de leis e doutrina jurídica suficiente para desconsiderar as importantes exceções que, ao comando de uma e à opinião da outra, oferece este art. 188 do Código Civil.

O mais grave, porém, é que a fundamentação do parecerista invoca o princípio constitucional da eficiência, que vincula a atividade da administração pública, previsto no art. 37 da Constituição Federal, para sustentar a sua juridicidade.  Por si, este princípio seria bastante para desencadear o desforço imediato a ser utilizado por ela, sem necessidade de mandado judicial.

Cabe comparar, então, esta razão do parecer, com a seguinte e muito oportuna lição:

A Administração Pública, em sentido largo, é encarregada de promover o bem-estar da população, norteando-se por rigorosos princípios (art. 37, caput), notadamente o da eficiência em seus atos, condutas, programas e estratégias. Daí que, em princípio, uma dada política pública haveria que corresponder ao interesse social que lhe é subjacente e que lhe confere legitimidade;  todavia, aí se trata de uma sorte de presunção relativa, porque nem sempre ocorre a aderência ou a correspondência entre esses dois planos, podendo dar-se que uma certa política atenda ao interesse governamental, mas não consulte ao interesse público primário.[6]

Aí se encontra a verdadeira e principal questão completamente desconsiderada pelo parecer, mas suficiente para negar-lhe juridicidade constitucional.  Interesse público primário, como a própria adjetivação convence, é o prioritário, prefere a qualquer outro, tem de ser atendido sem demora, como acontece, por exemplo, com todos os direitos humanos fundamentais sociais, onde a vida e a dignidade humana se encontram presentes, exigindo atenção e respostas urgentes, diárias, concretamente, de fato, e não de promessas legais.

Essa prioridade tem de ser respeitada por qualquer governo, não por ser governo, nem por estar sujeita a qualquer juízo episódico,oportunista ou propagandístico da autoridade dele, mas por impor-se constitucionalmente como obrigatória obrigação a ser cumprida por qualquer política de Estado (!). Obrigação de Estado é obrigação de Estado e não só de governo, nem esse pode submetê-la ao seu livre arbítrio. Valesse o contrário, como o parecer dá a entender, a Constituição Federal não teria estabelecido  percentuais de receitas públicas a serem reservados para cobrir as despesas indispensáveis ao custeio das obras e dos serviços necessários às garantias devidas à eficácia de alguns dos direitos humanos fundamentais sociais e à comprovação da eficiência (!) da administração pública em cumprir as obrigações respectivas para isso.

Até sobre os chamados “limites do possível”, portanto, o “contingenciamento de verbas”, a “obrigação de ser respeitado o devido processo legal” – seguidamente lembrados pela administração pública para desculpar-se por sua costumeira demora em implementar políticas públicas indispensáveis ao custeio do que ela precisa para executá-las – o povo tem o direito de ver-se esclarecido devidamente, para poder formar juízo do que está acontecendo, sob pena de a própria devedora das obras ou serviços ser responsabilizada como inadimplente das suas obrigações prioritárias.

O parecer usa um exemplo ad terrorem, para assustar a imaginação das/os suas/seus leitoras/es, lembrando os efeitos trágicos  que a ocupação de um hospital público pode causar. Certamente não se recordou quanta gente que protesta por saúde no Brasil, em muitos outros prédios públicos, morre antes do dia que a perícia marca para se saber qual a doença que ela tem e como deve ser tratada.

A ironia presente no exemplo lembrado pela opinião parecerista  é dolorosa. Um protesto coletivo de gente doente, que reivindica em outro lugar e espaço público, o acesso aos meios indispensáveis para a sua cura, inclusive para ver garantido o direito à saúde própria e a de toda a sociedade, até para que novos hospitais sejam construídos, talvez, ou melhor equipados, facilitado o acesso a eles, ao aumento do número de leitos, ao atendimento e tratamento médico, aos remédios, tudo isso merece ser reprimido por um violento desforço imediato, independentemente de autorização judicial, segundo o parecer.  O apoio a uma tal ineficiência (!) da administração pública não pode contar com uma orientação normativa tão despropositada como ele propõe.

A interpretação equivocada do parecer da AGU, sobre os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade da administração pública, para legitimar o desforço imediato, pode servir para impugnar a orientação normativa que ele sugere.

Se o princípio constitucional de eficiência da administração pública pode colher, na própria argumentação do parecer, as razões pelas quais a orientação normativa, por ele proposta, é equivocada e inconstitucional, com maior razão o mesmo deve ser reconhecido sobre os da moralidade e da impessoalidade.

Considere-se o que, a respeito de um e de outro desses princípios pode estar em causa, cada vez que ocorre um fato lamentável, imoral,   que vem manchando a história do Brasil há séculos, relacionado com a atividade da Administração pública do país:

Ninguém é capaz de notar um poderoso sonegador de imposto, que invade um prédio público para peitar um funcionário, um fiscal, um parlamentar, ou até um/a juiz/a, visando comprar o não pagamento ou até a quitação de um imposto, a manipulação de uma concorrência pública, ou alguma outra forma criminosa de garantir vantagem indevida. Ou  seja, dar um jeito de desviar, subtrair um dinheiro  pertence ao mesmo povo que, prejudicado por essa propina, vê-se forçado, depois, a ocupar um prédio público porque o dinheiro que era devido à  garantia dos seus direitos foi roubado, já existe denúncia criminal contra corrupto e corruptor, mas a administração pública não se mexe.

De que lado estarão os princípios da moralidade e da impessoalidade num caso de tanta gravidade e ocorrência como este, como a Polícia Federal investiga agora por meio da chamada “operação Zelotes”? O parecer em causa não tem esta resposta ou, se entende possuí-la, concebe ambos aqueles princípios de modo abstrato e neutro, sem efeito prático algum. Aliás, pelo que a mesma historia do país e de outras nações mostra, há muito de ideologia e preconceito nesta inércia acomodada da administração pública com a qual não compactua a sociedade civil, manifestando esta a sua inconformidade, por meio de protestos massivos, inclusive em imóveis públicos:

“Esta sensibilidade coletiva tem muito que ver, como intento demonstrar, com a Ética pública e deve, em minha opinião, modular o conjunto das mudanças, em alguns casos muito negativas, que se tem operado na Administração pública. Estimular a consciência ética do funcionário, supõe apostar na exemplariedade e na recuperação dos valores do homem que, lamentavelmente, tem caído desfigurados a favor de uma cultura perigosamente mercantilista que produz um consumismo selvagem e, como não, crescimento do próprio em prejuízo do coletivo. Tudo isso no marco de um regime que suponha uma substancial melhora das retribuições dos funcionários e que traga consigo um estilo de trabalho consciente da magnitude da tarefa a realizar.”[7] 

É claro que, no caso brasileiro, a parte final desta lição não pode ser estendida aos imorais e escandalosos proventos e vantagens de agentes políticos e servidores públicos do mais alto escalão, que mantêm seus privilégios sob guarda segura da Administração Pública.

O que interessa salientar-se, porém, nesta outra lembrança de Arana-Muñoz, é o seguinte:

Desconsiderada a motivação legal, visivelmente ética e, conforme o caso, nos seus efeitos coletivos e difusos, marcadamente impessoal, do protesto massivo, sugerido supra como exemplo anti corrupção,  não dá para se deixar de observar uma  evidente aberração.Se for executado contra ele um desforço imediato, promovido pela Administração pública, sem prévia autorização e mandado judicial, ela estará “legitimando”, de fato e pelo seu livre e irresponsável arbítrio,  de forma pública, a inocência, tanto do agente público que recebeu a propina, quanto do corruptor que o peitou e pagou.

Com isso, a Administração Pública desmente o velho ditado de que o crime não compensa e criminaliza, paradoxalmente, a ocupação popular do imóvel público, que visava defendê-la, justamente, de um crime praticado contra ela. A opinião do parecer oportuniza, então, que ela possa bater no povo, executando um desforço imediato, sem autorização e mandado judicial.

Daí a ser identificada com milícia, do modo como já está acontecendo hoje no país, o passo é curto e o risco bastante provável. É urgente provocar-se o Poder Judiciário contra este risco.

Instrumentação jurídica da sociedade civil defender-se contra os prováveis efeitos da ordem normativa sugerida pelo parecer objeto desta crítica 

O Estado se caracteriza por ser um agente indutor de políticas públicas tendentes a garantir o bem estar do povo a quem serve. Os direitos sociais dependem dessas políticas, mas há um fato notório –  independente de prova formal, portanto – de que, em matéria de direitos sociais, esta obrigação tem sido historicamente descumprida pela mesma Administração pública, não raro deixando de se apresentar outra saída para a defesa desses direitos que não seja a de ocupar (!) (não invadir, portanto), imóveis públicos para denunciar o não atendimento de demandas antigas vítimas de flagrante desrespeito à própria Constituição Federal.

À questão de se perquirir se, mesmo sob todas as questões relacionadas com as obrigações recíprocas que envolvem o exercício da autoridade administrativa supra lembradas, não cabe ao povo o direito de fiscalizar nem controlar a administração, seja por pressão política, seja pela ocupação de imóvel público, cabe esclarecer:

“Qual é a finalidade do controle administrativo? Qual o objetivo que ele tende a alcançar? Se bem não se possa negar que o controle administrativo tem por principal objetivo proteger e garantir os direitos e interesses dos administrados, a fim de não serem afetados pela ação da administração pública, não é menos certo que o resultado último de dito controle é a manutenção da regularidade administrativa, ou a sua recomposição quando a mesma for quebrada.” {…} Tanto isso é assim, que esse objetivo fundamental de controle administrativo está sempre presente na motivação de todo o administrado que promove uma ação de controle, já que em tais casos o que sempre se sustenta e trata de demonstrar é que um ato ou uma conduta administrativa são ilegítimos, contrários à lei, escaparam à sua necessária subordinação à ordem jurídica e que, por isso, devem ser modificados e substituídos por outros que cumpram com este requisito, coincidindo assim o direito ou o interesse particular do acionante com o interesse público implícito ou expresso em cada hipótese.”[8]

Ora, foi contra propostas historicamente semelhantes àquela que o parecer em causa sugere se faça orientação normativa da Administração pública, que os modernos meios de ação coletiva em garantia deste controle lembrado por Escola, alcançaram força constitucional nos Estados de direito.  A quais de algumas disposições da nossa Constituição Federal, o parecer não facilita serem ameaçadas ou violadas, se a ordem normativa por ele proposta for posta em execução? Tomem-se alguns exemplos retirados de incisos do art. 5º

XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; (Regulamento) (Vide Lei nº 12.527, de 2011).

Se uma ocupação multitudinária, realizada sobre imóvel público, é feita contra uma chicana administrativa qualquer que venha sendo usada para não dar resposta a um interesse coletivo carente de informação urgente, relacionado com um direito humano fundamental social, cabe desforço imediato a ser executado pela Administração inadimplente da obrigação aí prevista?

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Como a opinião parecerista consegue sustentar o contrário?

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.

Mesmo quando a ocupação pretender garantir o respeito ao interesse público primário, sob risco ameaçado ou já ferido, conforme o identifica Mancuso na lição supra transcrita, o desforço imediato, sem autorização judicial, não estará atentando contra os direitos e liberdades que aquele interesse comporta?

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

Durante a execução do desforço imediato, na forma preconizada pelo parecer, é mais do que provável a possibilidade de essa prisão se verificar contra alguns ou algumas dos/as manifestantes. Mesmo aí, estará ela legitimada por essa disposição constitucional?

LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação

Existe uma deplorável tendência, provada todos os dias, de a Administração transformar o devido processo legal em pura burocracia suficiente e capaz de inviabilizar o devido processo social. É uma forma perversa escudada num bordão surrado do tipo “todos devem respeito à lei”, para ela simular o próprio desrespeito que pratica contra esta, sob o pretexto hipócrita e imoral de que está, apenas, cumprindo o que o ordenamento jurídico determina.

Uma prova disso pode ser encontrada na interpretação que o parecer, embora sem referi-lo, implicitamente deve estar fazendo do inciso XVI, do mesmo art. 5º da CF:

“Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.”

Aparentemente, numa interpretação puramente fundamentalista deste inciso – sujeita a uma subsunção silogística “pura” e abstrata do que ele ordena, mas descontextuada da realidade, de modo “racional” mas não  razoável – que tudo quanto aqui se está argumentando contra a opinião do parecerista estaria prejudicado. Caberia ponderar, todavia, contra esse reducionismo, uma regra do mais simples bom senso, válida para qualquer relação da Administração com administradas/os, nas quais os direitos em causa estão sejam sempre sujeitos a obrigações recíprocas, aquilo que o próprio Código Civil colocou como regra, e que, por simples analogia, cabe ser cogitado em sentido contrário àquela hermenêutica. Em seu art. 476, o Código Civil prevê, como “exceção de contrato não cumprido”:

“Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.”

Ora, ninguém ocupa um imóvel público, ciente do poder da repressão e da humilhação que pode sofrer, senão depois de ter padecido, esgotado todos os recursos legais para que a Administração  cumprisse o que lhe é devido por direito. A ocupação é a derradeira chance, manifesta claro desespero pelo costumeiro e iterativo descumprimento, por parte Administração Pública, dos mais elementares deveres que ela tem para com a coletividade. Pretender, como o parecerista propõe, que até isso só pode ser feito por prévio aviso à Administração inadimplente, é o mesmo que armá-la para impedir que até a execução da “justiça pelas próprias mãos”, quando mais do que legitimada e justificada, alcance algum sucesso, por mínimo que seja.

Exemplos notórios deste fato podem ser vistos na mídia, quando povos tradicionais, indígenas, multidões de sem-teto e de sem-terra, catadoras/es de material, gente pobre enfim, movimentos populares de defesa do meio ambiente, manifestam a sua justa e legal inconformidade com o escândalo no qual incorre o Poder Público no caso de, em vez de se colocar a seu serviço como impõem suas funções constitucionais, demonstra completa infidelidade a essa missão, portando-se com indiferença, descaso, ou até o uso da força  policial contra quem lhe cobra essa injustiça.

A conseqüência desta postura é dramática, pois a história dessas ocupações de imóveis, sejam privados ou públicos, atestaria que, se não fossem elas, as políticas a cargo da administração do Estado para garantir a eficácia dos direitos que lhes servem de motivação ainda seria mais minguadas do que já são hoje.

Considerem-se, por exemplo, quantas desapropriações de terra, para execução da reforma agrária, quantas regularizações fundiárias, quantas demarcações de terras indígenas, quantos georreferenciamentos de terras de quilombolas, quantos financiamentos surgiram, de fato, para aquisição de moradias, quantos serviços públicos de energia,  água, saneamento básico, chegaram a ser disponibilizados até em loteamentos considerados “irregulares”. A maior parte de todos esses direitos de acesso do povo pobre a um bem de vida como é a terra e a outros direitos, foi alcançada por um preço altíssimo pago pelo povo pobre em dor e sofrimento para ter acesso a ele, e só encontrou audiência e resposta da Administração pública, quando esta foi pressionada por protestos massivos,iguais ou semelhantes ao que o parecer agora quer impedir pelo desforço imediato sem autorização e mandado judicial.

Essa é a razão pela qual, à revelia do Estado e das instituições públicas, o povo é obrigado a criar um verdadeiro “parasistema”, do qual a ocupação do imóvel público aparece como exemplo, para se defender do sistema imposto pela lei, quando essa sofre de uma interpretação como a do parecer aqui em causa consagra.

Em “La administración paralela”, Agustín A.Gordillo mostra de forma irretorquível a origem e a legitimidade desta defesa, quando identifica o parasistema como “insatisfação frente a um sistema desvalioso”:

“Uma das causas que concorrem à generalizada violação do sistema, e a criação de um sistema paralelo de normas de conduta, é a comum insatisfação que em muitos países existe a respeito das normas estabelecidos do sistema. Posto que se as percebe como injustas ou irreais, se considera automaticamente que se tem o direito e até o dever de desconhece-las {…} “Tudo isso nos demonstra que um ao menos dos elementos integradores da existência de um parasistema, há de achar-se  nas próprias falências do sistema, ao menos falências como as percebe a comunidade. Poderá sustentar-se, talvez, que não são falências verdadeiras, que, por exemplo, os juristas consideram magnífica a ordem ali estabelecida; mas, se a comunidade como um todo não tem a mesma percepção e sente ao contrário que o sistema é desvalioso, então está dada uma das primeiras causas possíveis do aparecimento de um parasistema, já que nenhum sistema verdadeiramente rege se não tem o sustento participativo e ativo de toda a comunidade: os advogados e juízes, com auxílio da administração e da polícia, não bastam para transformar em real e efetivamente vigente a diário um sistema normativo a que em parte a comunidade inteira não adere verdadeiramente.” [9]     

Aí está. Não faltam exemplos, no Brasil, de qualificada legitimação deste parasistema, ao qual o parecer aqui em causa, mesmo sob a  comprovada falência do sistema, pretende criminalizar.  O “Direito achado na rua”, o “Direito Alternativo”, o chamado “positivismo de combate”, têm alcançado dar à própria Constituição Federal a mudança de um paradigma hermenêutico que lhe confere o poder emancipatório de “constituir” –  valha sua própria denominação –  e não só “regular” o que o povo pode ou não fazer,  como Boaventura de Sousa Santos insiste em suas prestigiadas lições.

Por isso, não faltam ações constitucionais para se impedir que a orientação normativa deste parecer seja impedida de criar os seus efeitos. Entre elas a ADI ou ADIN (ação direta de inconstitucionalidade), aparece como, talvez, a principal possibilidade aberta, especialmente para o Ministério Público, tomar a iniciativa de levar ao Poder Judiciário conhecer e julgar um pedido urgente de reconhecimento da inconstitucionalidade desta normativa.

O artigo 4º do Código de Processo Civil, que o parecer nem recorda, por entender que desforço imediato por ele aconselhado dispensa o Poder Judiciário de cumprir as suas funções, determina:

“As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

É essa atividade satisfativa que a Administração pública não exerce e que motiva e legitima as ocupações multitudinárias de imóveis públicos, que as ações constitucionais podem suprir. Doutrina e jurisprudência, com muito maior sensibilidade legal e social do que a do parecer em causa, vêm tentando vencer a burocracia dos formulismos processuais. Isso está sendo feito, com a ampliação de poder e da agilidade das chamadas tutelas de urgência, com percuciente exploração dos efeitos jurídicos próprios dos direitos humanos fundamentais sociais, previstos como clausulas pétreas na Constituição Federal.

Cumpra, então, a Administração pública com as suas obrigações que os imóveis, não dela e sim do domínio público, não serão mais ocupados, mas não se valha para isso da violência do desforço imediato sem autorização e mandado judicial. A pretexto de estar exercendo a sua autoridade, não disfarce o seu poder de impedir o povo de exercer e gozar dos seus direitos humanos fundamentais, especialmente os sociais, confundindo Estado de Direito e democracia com ditadura.

 

*Jacques Távora Alfonsin é associado honorário do IBDU, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul, mestre em Direito e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

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